Folha de S. Paulo


DEPOIMENTO

Fiz pornochanchada satírica para bancar cinema político

Bruno Poletti/Folhapress
O escritor e jornalista Álvaro de Moya
O escritor e jornalista Álvaro de Moya

Álvaro de Moya, um dos principais pesquisadores de histórias em quadrinhos do país, morreu na última segunda (14), aos 87 anos, em São Paulo. Ele foi o primeiro a abraçar o segmento, quando pais, professores e psicólogos consideravam o gênero prejudicial à formação das crianças.

Moya também atuou em jornais, na TV e no cinema. Abaixo, um depoimento inédito dele sobre as filmagens de "A B... Profunda", uma pornochanchada que satirizava o clássico "Garganta Profunda".

A íntegra do texto está no livro "Débora Muniz, do Terror ao Amor" (ed. Laços, 248 páginas), de Rafael Spaca, que será lançado em 29/8.

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Nos anos 1980, dediquei-me a escrever um script, propondo uma visão moderna de "Macbeth", de Shakespeare, na América Latina (Brasil, Uruguai, Argentina, Bolívia, Paraguai) dominada por diversos Macbeths, no período da ditadura latino-americana. O projeto tinha o apoio do ator italiano Gian Maria Volonté.

Como achava que o filme poderia ser embargado pelos militares, decidi fazer uma coprodução com a Itália. Eu montaria o filme no Brasil e faria uma versão italiana, caso o filme fosse apreendido.

Propus então à Empresa Cinematográfica Haway que filmássemos algo rapidamente para ganhar muito dinheiro e bancar a coprodução do "Macbeth" com os italianos.

Naquela época, um advogado brasileiro muito esperto conseguiu que os filmes pornográficos pudessem ser lançados por meio de liminar. Quando se colocava o cartaz "FILME LIBERADO POR LIMINAR", todo mundo já entrava no cinema para ver porque sabia que era de sexo explícito.

Logo me lembrei do pornô americano "Garganta Profunda" (1972), que rendeu muito dinheiro. Ele conta a história de uma mulher (Linda Lovelace) que tem o clitóris na garganta e é boa de sexo oral.

Como no Brasil a preferência nacional é "pegar por detrás", imaginei que a nossa personagem teria um clitóris atrás. Ficaria bem brasileiro.

Fiz uma paródia, mas com fotografia melhor, moças mais bonitas e produção mais caprichada. E também com muito conteúdo político.

Havia um ditador latino-americano que punha na bunda do seu próprio povo. Tinha outro que era fanático pela Coca-Cola, além do James Bunda, uma versão do James Bond.

A Haway imediatamente topou. Não eram atores da Boca do Lixo. Escolhi só gente nova, à exceção da Débora Munhyz, praticamente a única conhecida. O pessoal a conhecia dos filmes do Zé do Caixão. Tive que convencê-la.

Achava a Débora Munhyz uma boa atriz, e me disse que queria mudar de gênero porque não tinha mais trabalho. Quer dizer, o Zé do Caixão estava proibido pela censura.

Ela disse: "Eu sou obrigada". Ou ela fazia isso, ou ficava completamente fora da produção cinematográfica.

QUADRINHOS

Estive sempre preocupado em fazer o filme sem que parecesse ter saído da Boca do Lixo. Sabia que o pessoal de lá tirava sarro: "Intelectual fazendo filme pornográfico".

Não sabiam que eu tinha o delírio da linguagem popular por causa dos quadrinhos, e que eu tinha condição de fazer comédia com sexo explícito.

Na hora em que estávamos filmando uma sequência no Guarujá (SP), recebi uma ligação do Gian Maria Volonté me informando que o dinheiro italiano para a coprodução do "Macbeth" estava garantido.

Quando terminou a ligação, alguém me falou assim: "Você vai fazer o filme com o Volonté? Guarda o seu nome pro filme italiano. Põe pseudônimo". Tinha lógica guardar o nome para um filme sério.

Como o diretor do "Garganta Profunda" era o Gerard Damiano, que também era pseudônimo, decidi assinar como Geraldo Dominó.

Estava acostumado a trabalhar em TV com muita rapidez e em três semanas terminei o filme. Na seguinte, fiz a montagem. E na outra, dublei.

Montei também uma versão em inglês, com legendas em português, que levei para o Festival de Cannes. Um dia chego na empresa no fim do expediente de uma sexta-feira e descubro que a liminar saiu. O filme entraria na segunda de manhã no Cine Marrocos.

Às 9h daquele dia a sala estava completamente lotada, com gente de pé. O povo pulava de rir, gritava, uma graça enorme. Entenderam a parte humorística, que era muito forte. Foi nas histórias em quadrinhos que eu me inspirei pra fazer humor desse gênero.

O filme fez um enorme sucesso! Toda vez que o cinema ia mal, iam lá e punham o filme. Estourava. Como aqueles empresários tinham cem cinemas, começaram a passar em tudo quanto era casa própria.

Estavam construindo três cinemas no Center Norte e não tinham dinheiro. Com a renda de "A B... Profunda", inauguraram três salas. Vinha gente do interior para alugar o filme para passar lá. Teve um caso igualzinho ao filme do Federico Fellini, que vai passar na cidadezinha e um padre avisa: "Quem for ao cinema está excomungado!". Claro, aí todo mundo vai ver o filme.

No nosso caso, uma atriz falou que o filme ia passar na cidadezinha dela no interior de Minas Gerais. Foi recebida com festa, prefeito e tudo. Entrou como grande estrela no cinema, o público aplaudindo. Ela fazia sexo oral, anal... A galera achando que ela era a estrela da cidade... Não teve aquele preconceito de dizer: "Olha, ela foi para São Paulo e virou garota de programa".

Nós tínhamos feito a seleção dos atores e das atrizes num motel. Deixei claro: "Não finjam! Vocês estão fazendo sexo de verdade!". O público que vai ver esse tipo de cinema não é um público 'de cinema', ele quer ver cenas de sexo. Nada de efeito de luz, fora de foco, nada! Apenas ginecológico.

Pedi uma edição de vídeo perfeita porque a plateia quer ver tudo, pernas, empolgação.

Era muito difícil filmar cenas de sexo. Os homens sofrem muito. A gente chegava às 7h e filmava todas as cenas porque os caras tinham acabado de acordar, tomado banho, café... No fim do dia, havia as cenas de diálogo. Se a gente filmasse essas antes, quando chegasse a hora do sexo eles estariam esgotados.

Era também muito difícil ter mulher bonita para fazer sexo explícito. Mas consegui lindas atrizes lideradas pela única profissional, Débora Munhyz, para atrair o público.

Em sua primeira vez, naquele mesmo dia no Guarujá, ela estava no sofá entre dois homens. Quando terminou a cena, entre pétalas de rosas vermelhas, desmaiou. Não tínhamos um médico. Todos, solidários, socorreram-na imediatamente. Foi emocionante. Um retrato da dificuldade de sobrevivência no cinema nacional.

MACBETH

Certo dia, Gian Maria Volonté descobriu que estava com câncer no pulmão. Foi para a mesa de operação, saiu, sobreviveu e abriu mão da carreira política (era deputado do Partido Comunista). Acabou morrendo tempos depois.

Não adiantaria pegar outro ator e colocar no lugar porque era o Volonté. O público italiano confiava no ator. Sem ele não teria sentido minha versão de "Macbeth". Mesmo que se tivesse Marcello Mastroianni, Ugo Tognazzi, qualquer um... Nenhum deles teria aquela aura de "isto é um filme político de conteúdo".


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