Folha de S. Paulo


Crítica

Ana Martins Marques e Eduardo Jorge abalam conceito de lar

Danilo Verpa/Folhapress
PARATY - RJ - 04.07.2013 - As poetas Bruna Beber (dir) Ana Martins Marques (blusa listrada), e e Alice Santâ€Anna (vestido azul) durante messa O dia a dia debaixo d´agua durante a Flip 2013. (Foto: Danilo Verpa/Folhapress, ILUSTRADA)
A poetisa Ana Martins Marques, uma das autoras de "Como se Fosse a Casa", em evento da Flip em 2013

Será sempre mais produtivo encontrar-se –ou atritar-se– com uma obra de arte levando em conta o momento histórico em que foi produzida, ainda que a obra não espetacularize seu vínculo às convulsões de seu tempo.

A determinação é sutil, mas merece atenção. A obra de arte lança tributários a passados e futuros sem desligar-se do tempo e dos espaços concretos de sua elaboração.

Por esse prisma, a pertinência de "Como se Fosse a Casa (Uma Correspondência)" é total. Os tempos são de muros, deportações, assentamentos improvisados. Um dos corolários mais evidentes da crise migratória global é precisamente a precarização da "morada", ou ao menos uma tradução da mesma em espaço disputado, frente de combate, esconderijo.

Mas não é preciso ir longe para constatar como anda em xeque a noção de casa. Mesmo entre nós a experiência cotidiana é cada vez mais determinada por um dualismo entre interior e exterior, espaços seguros e espaços inseguros.

Abundam nas narrativas oficiais tentativas desesperadas e desesperadoras de estabilização destes espaços.

Os poemas de "Como se Fosse a Casa" opõem-se às redutivas intuições geométricas de Bachelard em "A Poética do Espaço", sugerindo uma complexificação de conceitos de território e propriedade herdados ou impostos.

Amarra os poemas do livro, naturalmente, o tema da casa. E uma circunstância particular: a correspondência entre Marques e Jorge se constrói ao longo de um período em que ela ocupa o apartamento dele, no famoso Edifício JK, em Belo Horizonte.

No próprio livro, Jorge é situado como estando "em viagem". Vê-se, de saída, que não se trata propriamente da casa: é como se fosse.Em ambos os poetas, modos aforados de pensar a questão.

Predomina no volume uma saudável suspeição diante da instituição-casa, suas conotações de abrigada, ninho.

Tanto em Marques como em Jorge vemos um trabalho louvável contra a visada sentimental que traduz irrefletidamente "casa" em "lar", "cidade" em "comunidade". "Casa" como que se desdobra negativamente, trazendo para seu campo de possibilidades significativas o exílio, o alheamento, o não familiar.

Embora irmanados na temática, preservam-se as singularidades estilísticas de ambos os autores.

Onde Marques se empenha em tornar legível para si uma experiência de desfixação, Jorge parece já dominado pela vertigem do estrangeirismo, apostando em análogos formais para o trânsito em que se encontra; espécie de poética da decalcomania que não se furta a enxertar nos textos palavras em idiomas estrangeiros sem prévia ou explicação.

É como se Jorge tivesse sido já tomado pela desordem e pela fragmentação que Marques, com estruturas frasais claras e declarativas mais identificadas à prosa, representa regrar.

Como se Fosse a Casa
Ana Martins Marques, Eduardo Jorge
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A sintaxe de Jorge é menos linear que a de Marques; suas imagens, menos entregues; seus ritmos, mais indeterminados. O leitor habita seus poemas na condição talvez de migrante indesejado.

Já nos poemas de Marques, o que se vive é uma performance da lucidez, do adiamento do caos, a lição de uma domesticidade sempre em vias de barbarizar-se, tornar-se hostil como um país que não nos quer, em cuja recusa nos radicamos.

Tamanha a complementariedade das posturas que a empreitada a dois assoma, no limite, plenamente justificada. Assim, "Como se Fosse a Casa" conforma uma arquitetura improvável, harmoniosa e surpreendente.

COMO SE FOSSE A CASA
QUANTO: R$ 30 (48 págs.)
AUTOR: Ana Martins Marques E Eduardo Jorge
EDITORA: Relicário

ISMAR TIRELLI NETO é poeta, autor de 'Os Ilhados' (7 Letras)


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