Folha de S. Paulo


Mantido em segredo há duas décadas, diário íntimo de Leonilson vem à tona

"Muitas vezes eu gostaria de saber escrever. Juntar as frases pra formar um livro."

Leonilson não escreveu, mas deixou uma série de gravações como essa transcritas numa autobiografia mantida em segredo há quase duas décadas. O volume, numa rara fotocópia guardada por uma amiga do artista, ronda como fantasma o recém-lançado catálogo que lista a obra completa deste que foi um dos maiores nomes da arte do país no fim do século passado.

Enquanto um livro elenca todos os dados de sua obra plástica, sua vida íntima continua escondida à sua revelia.

Divulgação
O artista plástico Leonilson, alvo de catálogo completo recém-publicado
O artista plástico Leonilson, alvo de catálogo completo recém-publicado

Numa das fitas cassete que deixou, ele contava que daria de presente as gravações a um amigo, para que transformasse suas confissões desarranjadas numa espécie de autobiografia autorizada.

Seis anos depois da morte de Leonilson, vitimado pela Aids, aos 36, em 1993, "Frescoe Ulisses" estava pronto, mas não foi publicado por um veto de seus herdeiros.

Na época, o ato causou um racha entre os amigos do artista e sua família, que não queria expor a homossexualidade de Leonilson -o pivô da controvérsia eram trechos em que ele narrava um encontro com um soldado israelense no banheiro de um avião.

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O artista plástico Leonilson, alvo de catálogo completo recém-publicado
O artista plástico Leonilson, alvo de catálogo completo recém-publicado

"Fiquei olhando pra ele e perguntei se ele achava estranho aquilo. Ele falou que não", contou o artista. "Eu passei a mão na barriga dele e ele já tava excitado. Ele é bem magro e pálido, mas tem um pau grande e bonito. Teve uma hora que ele caiu pra um canto da parede e ficou encostado e era uma imagem linda porque ele tinha aquele rosto lindo, aquele cabelo escorrido, os olhos profundos e aquele pau. Ele gozou rápido na
pia e eu nem tinha gozado."

O episódio de poucos minutos se desdobra à exaustão em comentários do artista, que fantasia sobre o tal garoto página atrás de página, dando versões e desfechos distintos a um romance impossível.

Mais do que uma aventura erótica, essas suas lembranças distorcidas revelam muito sobre a solidão que tanto atormentou Leonilson em vida e que transparece em sua obra. Nesse sentido, são os alicerces secretos do mundo quebrado, atravessado de paixões não correspondidas que arquitetou em milhares de pinturas, desenhos e bordados.

"Tá faltando alguém. A verdade é que eu ando pela casa e tá faltando um colchão de casal aqui", narra o artista. "Tá faltando alguém pra me dar uns beijinhos quando eu acordo. Tá faltando alguém pra me abraçar por trás, me beijar o pescoço e esfregar a língua na minha orelha, lamber o bico do meu peito e me jogar na cama."

Uma parte bem menos direta e franca dessas gravações já embasou -com o aval da família- dois documentários -um curta de Karen Harley lançado há duas décadas e "A Paixão de JL", que Carlos Nader estreou há dois anos.

Mas "Frescoe Ulisses" -o nome foi escolha do artista- é um mergulho bem mais profundo em sua vida, dos momentos de glória, de viagens constantes a Nova York, Londres, Amsterdã e Paris, até a descoberta da doença que o mataria em pouco tempo.

ODISSEIA
Editado por seu amigo Ricardo Ferreira Henrique, estudioso de literatura já morto e que havia se radicado em Berlim, o livro teve uma série de versões, algumas delas lidas pela irmã do artista, Ana Lenice Dias, a Nicinha, que não concordava com a edição.

Entre as exigências, reveladas pela correspondência entre Henrique e a artista Leda Catunda, que intermediou o contato com a família, estava cortar detalhes de seus encontros sexuais e
trocar os nomes de seus amantes, parentes e amigos.

Todos eles, a não ser seus galeristas, aparecem na versão final como personagens da "Odisseia", de Homero. Mas não foram alterados nem apagados os -poucos, mas intensos- relatos sobre sexo.

No rastro da publicação de seu catálogo completo, que lista suas 3.400 obras, a pressão vem aumentando para que saia também seu diário íntimo, algo que a família agora se inclina a autorizar.

"Uma hora vai ser publicado, é questão de tempo", diz o galerista Eduardo Brandão, que foi um dos melhores amigos do artista. "É uma farsa isso não estar no catálogo quando tanta gente estuda Leonilson. Esse livro é maior do que ele, fala de uma geração inteira, da dor de uma geração."

O momento da descoberta da Aids, aliás, coincide com um hiato nas gravações. Leonilson volta a falar só um mês depois do exame. Enquanto avança a doença, suas últimas páginas ficam mais secas, clínicas, uma contagem exasperante das células de defesa. Sua última frase foi "parece que levei uma surra".

*

Leia a seguir trechos de "Frescoe Ulisses", a autobiografia de Leonilson.

Às vezes eu acho que fico mudando de lugar mudando de lugar mudando de lugar para manter o frescor, pra manter a surpresa de querer que cada manhã seja diferente. Cada vez que eu acho que já sei um pouquinho daquele lugar eu já quero ir embora.

Eu também tenho que apertar um pouco o meu cinto, tenho que controlar mais minhas loucurinhas. Eu acho que eu não tenho que controlar nada, eu vou viver.

Eu acho que vou amá-lo pro resto da minha vida. Ele é bárbaro, ele é uma estrela no meu caminho. Ele é um puta cara. Quando a gente transava era meio complicado. Eu não tinha muito tesão por ele. Às vezes eu tenho tesão por ele. Outro dia a gente tava falando no telefone. Quase que eu me masturbei, eu fiquei pegando no meu pau. Eu fiquei excitado e fiquei até com vontade de me masturbar. A gente ficou falando besteira. Mas eu acho que eu gosto de transar com outro tipo de cara. O Calipso é pro coração e pra cabeça, mesmo eu acho que ainda não encontrei um cara que fosse pra tudo. Às vezes você encontra um cara pro pau e não encontra um cara pro coração.

Contei pra ele que tinha conhecido uma mulher que tinha me deixado fascinado, e ele falou que achava que eu devia arranjar uma namorada, que não importa se eu transo com rapazes, que eu devia arranjar uma namorada pra cuidar de mim quando eu chegasse em casa, ter alguém pra me fazer carinho à noite, pra às vezes eu acordar à noite e a gente transar, brincar. Eu não jogo fora a ideia, mas não sei.

Aqui cada minuto é completamente meu, eu não tenho pra onde correr, eu tenho que enfrentar a selva, eu tenho que encontrar os galos, os leões e as águias, eu tenho que encontrar a fera que me ataca e o cara que mata essa fera que tá me atacando, eu tenho que me confrontar todo minuto e isso me deixa super-entusiasmado. Eu tô precisando me perder e me achar. Eu tô precisando ficar longe. Eu tô precisando ficar distante e pensar o que é que tá acontecendo comigo.

Eu nunca entrei no banheiro de um avião com um cara, mas eu adorei. E eu tô completamente apaixonado por ele e eu sei que isso é só o começo. Acho que ele é o rapaz mais bonito que eu já vi. Ele é pálido, tem o cabelo sem cor. Eu entrei antes no banheiro, dei um tempinho. Não demorou muito, e ele entrou. Fiquei olhando pra ele e perguntei se ele achava estranho aquilo. Ele falou que não, normal. Eu perguntei o que você quer que eu faça. Ele falou o que você quiser. Eu comecei a desabotoar o casaco dele e passei a mão na barriga dele. Comecei a desabotoar a calça dele e ele já tava excitado. Ele é bem magro e pálido, mas ele tem um pau grande e bonito. Eu peguei e comecei a masturbá-lo. Ele perguntou se eu não ia me masturbar também. Eu perguntei pra ele se ele queria tocar em mim. Ele falou não, mas "eu quero ver você se masturbar também". Teve uma hora que ele caiu prum canto da parede e ficou encostado e era uma imagem linda porque ele tinha aquele rosto lindo, aquele cabelo escorrido, os olhos profundo, o nariz, a boca, a camiseta amarela, o pescoço e aquele pau. De repente, ele gozou. Ele gozou rápido na pia e eu nem tinha gozado nem nada.

De qualquer forma é deliciosa essa sensação de ficar voando por cima do Atlântico. Há um mês atrás eu tava voando de São Paulo pra Nova York, pra Paris. E agora eu voei de Paris pra Londres, pra Nova York. Isso foi um momento "Breakfast at Tiffany's" nessa tarde. Eu fico pensando nessa cidade onde as pessoas compram, compram, compram, compram coisas que elas não precisam. Essa cidade é ficção científica para mim. Mas o que eu queria dizer é que a coisa mais bonita que eu posso imaginar agora são os olhos do Circe, os olhos profundos e aquela boca e o pau dele, mas os olhos, os olhos profundos e dum verde ou dum azul. Circe, eu queria tanto você aqui juntinho de mim, beijando você, pegando no seu pau aqui juntinho nessa cama estreita. É a coisa que eu mais queria era ter você aqui pertinho de mim namorando, namorando, namorando sem ligar pro mundo.

A verdade é que eu ando pela casa e tá faltando um colchão de casal aqui. Tá faltando, tá faltando alguém. Por mais que eu tente disfarçar, tá faltando alguém aqui. Tá faltando alguém pra me dar uns beijinhos quando eu acordo, pra dizer que eu não preciso me preocupar, pra dizer que tudo é filho da puta, mas que a gente tá junto. Tá faltando alguém pra subir e descer a escada junto comigo. Tá faltando alguém pra dar um risinho malicioso. Tá faltando alguém pra eu apoiar o meu queixo no ombro. Tá faltando alguém pra me abraçar por trás, me beijar o pescoço e esfregar a língua na minha orelha, lamber a minha orelha e lamber o meu pescoço, lamber o bico do meu peito e me jogar na cama, fazer tudo comigo.

Muitas vezes eu gostaria de saber escrever. Juntar as frases pra formar um livro. Eu pensei várias vezes em escrever um livro. Quando eu comprei esse gravador, eu queria gravar vários pensamentos pra chegar num livro. E eu acabo gravando todas as besteiras que eu penso durante o dia, e tem dias que eu não gravo. Eu queria saber juntar palavras e fazer frases. As frases que eu escrevo são sempre frases apaixonadas, eu queria escrever frases apaixonadas dissimuladas num texto de verdade.

Hoje eu fiquei pensando nessa coisa de mercado. O Hipócrates 1º às vezes me diz que eu preciso fazer uma carreira de acordo com tudo que tá estabelecido. A gente precisa fazer dinheiro. É óbvio que eu preciso fazer dinheiro pra fazer minhas viagens, pra comprar material. Eu agora tava pensando, eu vi o anúncio da exposição do Vik Muniz na "Flash Art". Eu quero fazer os meus desenhos e ficar em paz. Seria superfácil fazer umas pinturas fáceis, umas pinturas bonitas e vender e trabalhar com um cara em Paris, um cara em Nova York. Na hora que eu vi o anúncio do Vik Muniz, eu falei "puta, que inveja". Mas dentro de mim, eu não tenho inveja nenhuma de nada disso. É difícil vender os meus trabalhos, às vezes me sacaneiam porque não vende direito, mas foda-se. Eu trabalho na direção oposta de todo mundo. Eu trabalho pra dentro de mim, as pessoas trabalham pra fora, as pessoas trabalham numa coisa onde sentimento é a parte menos importante, menos interessante de tudo. Nós somos muito naïves, nós somos muito terceiro-mundistas. É impressionante como esse caráter de poder do país influi.

Entrei na sauna a vapor, ele tava lá sentado, pelado, gostoso, com um pauzão. Ficou aquele flerte. Eu sentei perto dele, fiquei olhando pra ele, ele ficou olhando pra mim. Ele ficou pegando no pau dele. Eu olhei, ele tava com o pau duro. Ele veio em minha direção com aquele pau. Eu dei uma chupada nele. Ele falou pra eu levantar, que ele queria pegar no meu pau. Eu levantei, ele pegou no meu pau. Na hora que ele pegou no meu pau, ele começou a gozar. Eu gozei também. Eu tinha a maior fantasia com ele. Achava que nunca ia acontecer. Ficava imaginando ele pelado. Ele apareceu pelado na minha frente com o pau duro, um puta pau gostoso.


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