Folha de S. Paulo


Mostra no Museu Afro Brasil exalta versão tropical e mestiça do barroco

Querubins de olheiras profundas e bochechas rosadas, anjos mestiços com asas de ouro e talhas de madeira cheias de detalhes florais dominam a parede de uma das galerias do Museu Afro Brasil. É a reconstrução fragmentada de tudo que sobrou de uma igreja barroca demolida.

Essas esculturas de Mestre Valentim, pilar da arquitetura do Rio colonial, adornavam o templo de São Pedro dos Clérigos, erguido no início do século 18 e posto abaixo na década de 1940 para a construção de uma avenida.

Elas voltam à vista agora soltas, deslocadas da dinâmica do altar original. No fundo, essas peças-chave entre as quase 500 da mostra "Barroco Ardente e Sincrético" operam mais como notas arrancadas de uma partitura, cada uma revelando uma das muitas armas no arsenal de floreios, espirais, curvas e deformações do movimento que fez do adorno seu elemento máximo de expressão.

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Fragmento de Sibila', obra de Mestre Valentim, agora na mostra 'Barroco Ardente e Sincrético
'Fragmento de Sibila', obra de Mestre Valentim, agora na mostra 'Barroco Ardente e Sincrético'

O amontoado de anjos, santas, talhas, colchas, castiçais, móveis e espelhos rococó que se alastra por um andar inteiro do museu no Ibirapuera, de fato, dá a sensação de excesso asfixiante que está na base da estratégia barroca.

Mas outro elemento -uma questão de pele- desponta com força nesse turbilhão.

"Nosso barroco surge a partir da miscigenação", diz Emanoel Araújo, que organiza a mostra. "Toda a arte mecânica e dos ofícios vem da mestiçagem brasileira e corresponde a um sistema social dividido entre os que vinham de Portugal, brancos da terra, mulatos, artistas e escravos."

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Resplendor circular agora na mostra 'Barroco Ardente e Sincrético', no Museu Afro Brasil
Resplendor circular agora na mostra 'Barroco Ardente e Sincrético', no Museu Afro Brasil

Teófilo de Jesus, na Bahia, Mestre Valentim, no Rio, e Aleijadinho, em Minas Gerais, os nomes que deram cara ao movimento em terras tropicais, eram todos mestiços e emprestavam a cor da pele aos anjos e santos que retratavam.

Mesmo Manoel da Costa Ataíde, filho de pais portugueses, também fez no teto da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, uma Virgem de nítidos traços negros, vista em fotografia na mostra.

Mas, além de espelhar a mistura de raças na colônia, o barroco luso-brasileiro também infiltra elementos profanos e sincréticos nas alegorias elaboradas para os altares e adornos, levando à aparição de estranhos seres híbridos, metade homem e metade monstro, que povoam igrejas.

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Farinheira de prata do século 18 agora na mostra 'Barroco Ardente e Sincrético', no Museu Afro Brasil
Farinheira de prata do século 18 agora na mostra 'Barroco Ardente e Sincrético', no Museu Afro Brasil

Longe dos templos, outras esculturas da época retratavam a volúpia em contornos animalescos. Entre elas os jacarés entrelaçados que Mestre Valentim esculpiu para o Passeio Público, no Rio. "Tem essa questão da sedução do barroco", afirma Araújo. "Esse barroco sensual aparece nas esculturas."

No caso, retratam a transformação da matriz barroca no país. O movimento surgido na Itália no século 17, impulsionado pela Igreja Católica que buscava formas mais diretas de ilustrar o terror e o êxtase da religião para os fiéis, parece ter ficado mais ornamental, às vezes mais brilhante, dourado e muito mais fantasioso na colônia.

Xavier das Conchas, por exemplo, representa bem esse último traço, com suas figuras sacras feitas de conchinhas do mar. Debaixo de redomas de vidro, suas bonecas marinhas lembram a palavra que batizou esse movimento de excessos. Barroco, termo de origem portuguesa, significa pérola imperfeita.

BARROCO ARDENTE E SINCRÉTICO
QUANDO de ter. a dom., das 10h às 17h; até 3/12
ONDE Museu Afro Brasil, pq. Ibirapuera, portão 3, tel. (11) 3320-8900
QUANTO R$ 6, grátis aos sábados


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