Folha de S. Paulo


Atriz e tradutora de musicais se divide entre teatro e consultório de dentista

Mariana Elisabetsky se define como "a maluca que quer fazer tudo sempre". Aos 38, divide-se entre atuar e traduzir musicais.

Em casa, cuida dos gêmeos Mia e Gael, 6, e trabalha em versões como as de "Cantando na Chuva", que chega aos palcos no sábado (12), e do musical da Disney "A Pequena Sereia", previsto para o próximo ano, ambos feitos em parceria com Victor Mühlethaler, com quem também traduziu "Wicked" (2016).

No palco, interpreta uma crooner na montagem do diretor Gabriel Villela para "Boca de Ouro", de Nelson Rodrigues, que estreia nesta sexta-feira (11).

Ainda auxiliou na pesquisa musical da peça–para dar o ar de melodrama da tragicomédia, concentrou-se no repertório de Dalva de Oliveira (1917-72). E criou a dentadura dourada utilizada em cena pelo protagonista (papel de Malvino Salvador).

Ah, sim; é que ela também é dentista. "Hoje atendo [no consultório] só uma manhã por semana. Eu tô no mínimo do mínimo, quase parando, mas não tenho coragem."

Mariana entrou na faculdade de odontologia da USP aos 17, ainda que já trabalhasse como atriz. "Não tive coragem de prestar artes cênicas. Achei que eu precisasse de uma coisa mais sólida. Grande engano, porque sempre ganhei mais dinheiro com o resto" –o cachê para traduzir um musical pode chegar a R$ 100 mil.

É de cedo que vem o contato da paulistana com a música. O pai, engenheiro, tocava violão em casa. A mãe cantava. Quando Mariana era bebê, o pai ganhou uma bolsa de estudos, e ela morou até os cinco entre a Inglaterra e os EUA.

Viu, aos três, uma montagem de "Annie", musical sobre uma garotinha órfã. "Eu enlouqueci. Achava que eu era a Annie, ela tinha cachinhos como eu. Minha mãe diz que eu cantava no metrô e as pessoas me davam moedas."

Mas foi aos 13 que participou de sua primeira peça, uma produção amadora de "O Violinista no Telhado". Em 1997, já apresentava o programa infantojuvenil "Turma da Cultura" (TV Cultura), alternando as gravações com as aulas de odontologia.

As traduções vieram por acaso. Um amigo lhe deu o texto de "Meu Amigo, Charlie Brown", que ela traduziu de curiosa. "Eu tinha todos os elementos: a música, a atuação, a língua. Mas nunca tinha percebido que sabia fazer aquilo até que comecei."

Sua versão de "Charlie Brown" (vencedora do prêmio Bibi Ferreira) espalhou-se entre produtores, e o musical foi encenado em 2010 –Mariana também atuou nele.

Mas foi depois de "Wicked" que as traduções começaram a pipocar. Hoje Mariana faz as versões em português de diversos produtos da Disney. Traduziu as músicas de "Moana" (e dublou um dos personagens) e do filme "A Bela e a Fera". Para o próximo projeto com a Disney (ainda secreto), também traduzirá o texto.

INEVITÁVEL

Mas o investimento na escrita, diz, só começou depois de os filhos nascerem. "Eu era muito chata, perfeccionista. Aí, quando eles vieram e percebi que errar era inevitável, abriu essa tampa e eu comecei a escrever loucamente."

Mia e Gael nasceram de uma inseminação artificial. Mariana descobriu aos 18 que possui um gene, o BRCA2, mesmo caso da atriz Angelina Jolie, que aumentava em 80% suas chances de desenvolver um câncer de mama depois dos 30. "Dei uma piradinha básica. Entrei na terapia e falei: já sei que eu vou morrer."

"E aí fizeram a pergunta fatídica, se eu que queria ter filhos, porque tinha que ser antes dos 30. Eu queria muito, só que eu namoro mulheres, não seria simples a equação."

A inseminação veio quando a atriz começara a namorar a cenógrafa Paula Izzo, também mãe das crianças e que fez um tratamento para ajudar na amamentação dos bebês. Três anos mais tarde, Mariana tirou útero e ovários e, em seguida, as mamas.

"Demorei um ano para me adaptar com a reposição hormonal, mas foi a melhor coisa que fiz. Tirou o peso."

Bom Dia

Hoje Mariana passa as manhãs, quando não clinica, traduzindo de casa, enquanto os gêmeos estão na escola. No caso de peças, trabalha num prazo de quatro a cinco meses. Quando divide as versões com Victor, que mora entre Nova York e o interior paulista, fazem tudo por Skype.

As versões depois são mandadas aos autores com a chamada "backtranslation": é preciso traduzir literalmente, do português ao original, para que os criadores entendam a adaptação (leia abaixo).

Às vezes, é necessário explicar algo que não tem tradução, como a brincadeira que fizeram em "Wicked" com "jogar um verde" (a protagonista tem a pele esverdeada).

Noutros casos, tem-se dificuldade em mexer num produto conhecido. Para "A Bela e a Fera", Mariana criou as versões de músicas novas, mas só pôde fazer pequenas alterações no português das canções antigas, da animação de 1991, ainda que tivessem problemas de prosódia.

Em "Cantando na Chuva", a produção até cogitou não traduzir as músicas mais famosas. "Ninguém imaginava como a gente poderia cantar 'Singin' in the Rain' em português", diz Claudia Raia, que, além de atuar no musical, o produz. "Mas eles [Mariana e Victor] deram um show, trouxeram nosso humor."

Na versão em português, a música ganhou os versos iniciais: "Eu canto por aí/ Eu danço por aí/ Cantando na chuva,/ a vida sorri".

Mariana conta que "é mais prazeroso do que imaginava" ouvir suas versões em cena ("eu me reconheço ali"). Mas ela já prepara, além de um livro infantil, um musical próprio, que deve sair no ano que vem. Trata de "uma menina que se acha esquisita". Talvez a garotinha também queira abraçar o mundo.

*

VAIVÉM

As versões do musical "Meu Amigo, Charlie Brown"

-

ORIGINAL

ALL (except Charlie Brown)
You're a good man, Charlie Brown
You're the kind of reminder we need
You have humility, nobility and a sense of honor
That is very rare indeed

SNOOPY
Woof!

ALL (except Charlie Brown)
You're a good man, Charlie Brown
And we know you will go very far
Yes it's hard to believe
Almost frightening to conceive
What a good man you are

-

PORTUGUÊS*

TODOS (exceto Charlie Brown)
Meu amigo, Charlie Brown
Um exemplo pra gente seguir
Tem humildade, lealdade e uma honestidade
Que é difícil conseguir

SNOOPY
Woof!

TODOS (exceto Charlie Brown)
Meu amigo, Charlie Brown!
Será tudo o que quiser ser
É difícil entender
Mas é fácil perceber
O amigo em você

-

BACKTRANSLATION**

ALL (except Charlie Brown)
My friend, Charlie Brown
An example to follow
He displays humility, loyalty and honesty
That are hard to find

SNOOPY
Woof!

ALL (except Charlie Brown)
My friend, Charlie Brown
Will be everything he wants to be
It'se hard to figure out
But easy to see
The friend in you

-

* versão de Mariana Elisabetsky

** tradução literal, em inglês, da versão em português para checagem do autor


Endereço da página:

Links no texto: