Folha de S. Paulo


Bicheiro sanguinário, Boca de Ouro ganha trajetória mitológica em peça

O bicheiro Boca de Ouro, figura do submundo carioca, ganha contornos mitológicos na versão do diretor Gabriel Villela para a peça de Nelson Rodrigues, que estreia nesta sexta-feira (11) em São Paulo.

É num palco preto, pontilhado de mesas e cadeiras como num salão de gafieira, que inicia a trajetória do temido Boca (papel de Malvino Salvador), autor de uma série de assassinatos.

Conhecido por mesclar referências visuais em suas montagens, Villela trabalha num conceito de claros e escuros. Começa nas trevas, com figurinos soturnos e pouca luz. Aos poucos, as estampas coloridas de camadas internas das roupas vão aparecendo, o palco vai sendo salpicado de confetes e referências carnavalescas e tudo clareia.

É em parte uma alusão à ideia de pós-verdade, ou de verdade líquida, em que toca a tragicomédia rodriguiana.

A história de Boca, ou melhor, a reconstituição de sua morte, é contada por dona Guigui (Lavínia Pannunzio), ex-amante do bicheiro, ao repórter Caveirinha (Chico Carvalho). Mas Guigui tem três versões muito diferentes e embaralhadas dos fatos, em especial do ocorrido com o casal Celeste (Mel Lisboa) e Leleco (Claudio Fontana).

"Trouxemos um pouco dessa ideia contemporânea [de pós-verdade]", diz Villela. "E a gente se aproximou de outras obras, como 'Rashomon' [filme de Akira Kurosawa] e [peças de] Pirandello que debatem a verdade."

Nascido de mãe pândega, que pariu o filho num salão de gafieira e abandonou o bebê ainda na pia do reservado, Boca de Ouro enfrentou logo cedo a realidade hostil. Trocou toda a arcada por dentes de ouro e cometeu uma sequência de crimes que lhe deu fama de megalomaníaco.

Na montagem, ele tem ainda mais aspectos vampirescos (seus apelidos vão de Drácula de Madureira a Rasputim Suburbano), mordendo a jugular das vítimas e manchando de sangue o brilho dos dentes. "Aqui ele virou um Hannibal", brinca Malvino.

Sua jornada começa sombria e, a cada um dos três atos, vai ganhando tons de dourado, chegando ao fim com uma máscara asteca, como se fosse uma espécie de entidade.

Villela também faz referências ao candomblé e seus orixás: a figura de Iansã, por exemplo, surge (interpretada por Guilherme Bueno) para varrer as mortes do bicheiro.

Já o tom melodramático da trama é reforçado pelo falar dos atores, que lembra diálogos empostados e um rolar de erres como os da Era do Rádio. Um aspecto, conta o encenador, que estava implícito na escrita de Nelson.

O estilo vocal é replicado no canto de Mariana Elisabetsky, no papel de uma crooner, que interpreta músicas como "Noite do Meu Bem" e "Na Cadência do Samba".

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BOCA DE OURO
QUANDO sex. e sáb., às 21h, dom. às 18h30; até 29/10
ONDE Tucarena, r. Monte Alegre, 1.024 (acesso pela r. Bartira s/nº), tel. (11) 3670-8453
QUANTO R$ 50 a R$ 70
CLASSIFICAÇÃO 14 anos


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