Folha de S. Paulo


Análise

Cindy Sherman constrói pesadelos em selfies grotescos no Instagram

Reprodução/Instagram/@_cindysherman_
Selfies manipulados com programas de edição de imagem para telefone que a artista americana Cindy Sherman vem postando em seu perfil no Instagram ao longo dos últimos meses
Selfies publicadas no perfil da artista manipuladas em programas de edição de imagens para telefone

Ela achava vulgar postar selfies nas redes sociais. Mas Cindy Sherman, a artista americana que passou as últimas três décadas se fantasiando e maquiando até o ponto de se tornar irreconhecível em seus autorretratos, agora parece ter mudado de opinião.

Ou não. Quando liberou para acesso do público na semana passada as imagens de seu perfil -antes fechado- do Instagram, foi como se escancarasse do nada para o mundo uma enorme exposição de manipulações grotescas de seu próprio rosto.

Nas imagens que postou ao longo dos últimos meses, Sherman passa ao largo do ideal de glamour e beleza almejada em fotos para caçar curtidas. Está toda esticada, amassada, enrugada, alisada, maquiada e manchada.

Selfie manipulado de Cindy Sherman

Sua cara lembra plástico derretido, como as faces flácidas dos relógios de um Salvador Dalí. Mas o surrealismo de Sherman é outro. No lugar do fundo psicanalítico, de sonhos convulsionados do espanhol, ela parece dissecar o pesadelo mais que concreto da autoafirmação por meio de coraçõezinhos digitais.

Também não é a brincadeira deslumbrada de alguém aprendendo a mexer nos programas de edição de imagem, embora ela esteja mesmo experimentando pela primeira vez com essas técnicas.

No fundo, Sherman parece desdobrar agora na esfera virtual seu questionamento sobre até que ponto a imagem fotográfica pode firmar uma identidade real, preocupação que ancora seu trabalho desde os primórdios.

Cindy Sherman

Quando despontou no cenário artístico, na década de 1980, a artista chamou a atenção da crítica com autorretratos em que se disfarçava de personagens de filmes que não existiam. Ou seja, Sherman queria ser outra, criando cenas perdidas de ficções possíveis a partir de uma base superverdadeira.

Era e não era ela mesma numa imagem toda construída, arquitetada até seu último grão de prata. Seu esforço foi encarnar todos os arquétipos femininos nos moldes estéticos da velha Hollywood, dizendo que uma mulher podia ser todas e ao mesmo tempo não passava de nenhuma.

Sherman agora quer ser ela mesma jovem, velha, deformada, acamada, alienígena. Suas manchas na pele, evocando as de uma paciente terminal, ou os arranhões e hematomas de alguém que levou uma surra, parodiam os malabarismos digitais por trás da construção -fragilíssima- da suposta imagem perfeita.

Cindy Sherman

Nas plásticas corrosivas que fez dela mesma no Instagram, a artista leva às últimas consequências o verdadeiro esvaziamento de identidade que marca todo selfie, a ideia de um autorretrato construído de fora para dentro, a performance inútil diante da câmera do celular.

Mas também são ambíguas essas imagens. Na superfície, os brilhos e efeitos distraem como o 3D aplicado a um filme sem graça. Um verniz sedutor parece arrematar as mais tristes e absurdas dessas fotografias, que reverberam entre a atração e a repulsa.

Nesse sentido, essas obras feitas com as pontas dos dedos em telas touchscreen se jogam na mais artificial das arenas para revelar o mais verdadeiro e perturbador senso de angústia. Sherman parece flagrar nelas a brutalidade que se esconde por trás de cada selfie inocente.


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