Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Melhor segredo de romance é o nexo entre fatos que narra

Nelson D'Aires/Folhapress, Ilustrada
Retrato do escritor João Tordo, no Jardim da Estrela, em Lisboa
O escritor João Tordo, autor de "Biografia Involuntária dos Amantes", no Jardim da Estrela, em Lisboa

BIOGRAFIA INVOLUNTÁRIA DOS AMANTES (bom)
AUTOR João Tordo
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 59,90 (369 págs.)

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"Biografia Involuntária dos Amantes", de João Tordo, é um policial sem crime a resolver. O que ocupa o centro da narrativa é um vazio que atinge em cheio a vida do narrador, um professor galego que pesquisa teatro e tem uma relação conturbadíssima com a filha adolescente.

Tal vazio está tanto na rotina comezinha do professor quanto na vida atormentada de Saldaña Paris, poeta mexicano exilado.

Essa condição faz com que o narrador transforme a conversa com Saldaña num novelo ficcional com várias pontas soltas. E uma forma de montar o quebra-cabeça seria transpor o vazio da vida de um para a vida do outro.

Como o próprio professor diz: "a melancolia de Saldaña Paris era agora a minha".

Partindo da história de amor entre o poeta e a instável Teresa, o narrador segue no encalço de cada personagem do relato de Saldaña, transformando-os literalmente em testemunhas.

Quando o livro se inicia, Teresa, que tinha abandonado o poeta, já morreu, mas ela deixa um manuscrito povoado de personagens que o professor também segue.

Os cenários são diversos, de cidades galegas, como Pontevedra e Santiago de Compostela, a Lisboa, Londres, México, e até um vilarejo perdido no Quebec.

Tais deslocamentos fazem desse viajante uma espécie de Phileas Fogg de "A Volta ao Mundo em Oitenta Dias", de Jules Verne, misturado com algum personagem errante de Roberto Bolaño, ambos autores citados no livro.

Por falar em deslocamentos e desvios, uma das pessoas procuradas afirma que "ao ficarmos mais velhos cada vez menos do que nos acontece é por acaso". Ao que o narrador, dando pistas do seu trabalho, responde: "Se não fosse o acaso, não estaria aqui a falar contigo".

Essa ideia do imponderável narrativo domina o livro, aparecendo, de forma alegórica, por exemplo, no misterioso postal que Saldaña Paris recebe no hospital: uma reprodução de "Rooms by the Sea". No quadro de Edward Hopper, a porta de um cômodo está aberta direta e irremediavelmente para o oceano.

Biografia Involuntária dos Amantes
João Tordo
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Até quando um narrador pode abrir portas atrás de portas e seguir adiante sem se colocar em xeque?

"Quanto mais fundo andar a esgravatar, mais coisas vai encontrar, coisas que talvez seja melhor deixar enterradas", diz uma testemunha.

É de forma franca que o romance valoriza o mecanismo da ficção. Afinal, até a história mais simples compõe-se de fatos isolados que estabelecem entre si algum nexo. E, quando bem explorado, tal nexo pode ser o melhor segredo de um romance.


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