Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Jeanne Moreau marcou a arte do cinema para sempre

Se existiu uma atriz capaz de simbolizar o cinema moderno essa foi Jeanne Moreau, que morreu nesta segunda-feira (31) aos 89 anos.

E, vamos admitir, a melhor saudação fúnebre a esta atriz veio da presidência da República Francesa, para quem ela encarnou tanto a rebeldia como a rotina. Poderia ser uma definição do cinema desde o fim da Segunda Guerra...

Com efeito, desde que irrompeu, em "Ascensor para o Cadafalso", em 1957, junto com o diretor Louis Malle, foi já quebrando as cadeias. Logo em seguida, "Os Amantes", do mesmo diretor, marcaria um momento ainda mais radical na ideia de libertação temática como estilística que marcou esse período do cinema.

Jeanne logo se tornaria uma atriz solicitada pelos maiores cineastas europeus. Com Michelangelo Antonioni, foi a estrela de "A Noite". Com François Truffaut consagrou de uma vez sua voz rouca em "Jules e Jim - Uma Mulher para Dois" (1961). Trabalhou a seguir com Orson Welles, que certa vez a chamou de "a melhor atriz do mundo": foi em "O Processo". Outros viriam (além das repetições com Truffaut, Welles e, sobretudo, Malle): Luis Buñuel, em "O Diário de uma Camareira", Joseph Losey, em "Eva", Jean Renoir ("O Pequeno Teatro de Jean Renoir").

Talvez o trabalho mias claramente comercial nessa década de 1960 tenha sido "Viva Maria", de Louis Malle, no qual fazia dupla com Brigitte Bardot. Bardot, ou BB, foi o maior "sex symbol" daquela década. Já Moreau não corria na raia da beleza física estonteante: era justamente a mulher moderna, intelectual, livre e não raro libertária que a marcou.

Com isso, ela foi sucessivamente a mulher um tanto convencional disposta a matar o marido ("Ascensor para o Cadafalso"), saltando para a esposa capaz de buscar um amante para fugir ao tédio ("Os Amantes"), antes de consagrar a liberdade sexual que se anunciava então, como a heroína de "Jules et Jim" (ou "Uma Mulher para Dois"), capaz de amar dois amigos ao mesmo tempo e com igual (ou quase) intensidade.

Mas não eram os personagens escandalosos que Moreau cortejava. Os anos 1970 marcaram sua associação com novos cineastas, em particular Marguerite Duras ("Cet amour-là") e André Téchiné ("Memórias de uma Mulher de Sucesso").

Mesmo no Brasil ela trabalhou duas vezes com Carlos Diegues, em "Os Herdeiros" e "Joana, a Francesa".

Se não marcou em especial o cinema americano desse período (a não ser pela participação secundária em "O Último Magnata", 1976, de Elia Kazan ou pelo trabalho com Welles em filmes de língua inglesa), marcou presença na América ao casar com o grande diretor William Friedkin, seu segundo marido (o outro foi o ator e diretor Jean-Louis Richard).

Foram apenas dois casamentos, mas, sabidamente, muitos amantes. Significam a inquietude sem fim, o gosto pela independência, a inteligência e o poder de sedução dessa atriz que, se vê sua força de estrela arrefecer na maturidade (como acontece frequentemente às atrizes), ainda filmaria, entre outros, com R.W. Fassbinder ("Querelle, de 1982), "Além das Nuvens" (1995, de novo com Antonioni, agora em parceria com Wim Wenders).

No novo século, pôde ainda deixar claro seu engajamento na causa pela aproximação entre israelenses e palestinos, trabalhando duas vezes seguidas com Amos Gitai (em Aproximação" e "Mais Tarde Você Vai Entender", de 2007 e 2008 respectivamente).

Já com mais de 80 anos teria forças —de sobra, aliás— para fazer a Candidinha de "O Gebo e a Sombra", o último longa-metragem do mestre português Manoel de Oliveira.

Que dizer ao final dessa vida completa? Que a cada novo trabalho ela reafirmou o gosto da liberdade, a rebeldia e o pouco apreço à rotina. Jeanne Moreau marcou a arte do cinema para sempre.


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