Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Volta de 'Twin Peaks' é a grande aventura cinematográfica do ano

Divulgação
Naomi Watts e Kyle MacLachlan como Janey-E Jones e Dougie na série 'Twin Peaks'
Naomi Watts e Kyle MacLachlan como Janey-E Jones e Dougie na série 'Twin Peaks'

TWIN PEAKS (ótimo)
QUANDO novos episódios às segundas, na Netflix

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O primeiro mistério de "Twin Peaks", a quem ninguém dá atenção (eu inclusive), vem do primeiro capítulo da série original, lá dos anos 1990, a saber: por que diabos um agente do FBI deve investigar o assassinato de uma adolescente numa cidadezinha no fim do mundo?

Esse primeiro enigma ilustra bem os procedimentos com que David Lynch nos introduz à grande aventura cinematográfica do ano: a nova série de "Twin Peaks". Existe algo de banal em tudo isso: um crime, uma investigação. No entanto, logo algo sai dos eixos e nos projeta no território do desconhecido.

Tomemos o primeiro crime da nova série: um cadáver é encontrado em um quarto. Logo, porém, descobre-se que é o corpo de uma pessoa e a cabeça de outra. Em seguida, a prisão: o professor havia deixado impressões digitais por todo o quarto da vítima. Mas sem nunca ter estado lá.

Que importa? Nessa altura, a pergunta é: onde isso vai dar? Ou seja, já mordemos a isca do lugar comum e navegamos na estrada perdida a que Lynch nos impele.

Nela tudo é possível, mas nada é ao acaso: tudo tem uma aparência "normal" até que algo nos desvie da normalidade. O desafio está dado. Existe o quarto vermelho, onde no início encontramos Dale Cooper. Onde Laura

Palmer fala com ele. O que é? Um sonho, um labirinto, um purgatório? Ou um sonho que sonhou um purgatório labiríntico?

É dali que Cooper precisa achar a saída para voltar ao mundo dos vivos, onde existe o seu duplo, um pouco como o "Médico e o Monstro", pois em Lynch as pessoas se desdobram como os cadáveres. E assim vamos: de Twin Peaks a Las Vegas, dali a Nova York ou...

Aos poucos descobrimos o que faz o FBI nessa história: a morte de Laura Palmer é a morte da beleza americana, a garota do baile da cidadezinha plácida, onde nada acontece de especial. A morte do clichê por excelência.

Nessa altura, outro aspecto chama a atenção. O gabinete do chefe do FBI, Gordon Cole (o próprio Lynch). Não existe ali foto em destaque de presidente americano ou coisa assim. Atrás da mesa, uma violenta explosão atômica parece resumir todos os retratos presidenciais de 1945 em diante.

Do lado oposto, uma foto de ninguém menos que Franz Kafka. Foto tutelar, sem dúvida. Como Kafka, Lynch se passa do registro causal. Gregor Samsa certo dia amanhece transformado num gigantesco inseto? Por quê?

Não sabemos e não importa. Só importa o que ele precisa fazer para levantar, como se alimentar, as aflições das tarefas a cumprir...

Existe uma diferença essencial entre Kafka e Lynch, como assinala Alcir Pécora: em Kafka, o único sentido é descobrir a ilusão de fazer sentido, a experiência do desengano e do absurdo. Em Lynch, para chegar à salvação é preciso atravessar uma estética do inferno. Ou passar pelo teatro do silêncio.

Nessa experiência estaremos sozinhos, tal como Dale Cooper ao atravessar o abismo estrelado que o trará de volta à Terra, a quem acompanhamos entre gozos e ausências: autista num mundo fantasmagórico.

Ao final dos 11 primeiros capítulos, nenhum mistério se dissipou. Outros vieram. Um corpo encontrado morto, uma cabeça estourada, a imagem de fantasmas irrompendo na tela. Há humor, horror, vício. Nada está resolvido, ao contrário, mas a beleza de cada fragmento nos fascina.

Porque o princípio de "Twin Peaks" é, também, o das "Mil e Uma Noites": conte-me uma história para viver mais uma noite. Em Lynch a ficção, como Sheherazade, existe in extremis, mas não acaba.


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