Folha de S. Paulo


Festa acerta em curadoria diversa, mas peca em debates sem entrosamento

Bruno Santos/Folhapress
Igreja da Matriz durante a mesa Livro de Cabeceira, no domingo (30), último dia da 15ª Flip
Igreja da Matriz durante a mesa Livro de Cabeceira, no domingo (30), último dia da 15ª Flip

A proposta da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de fazer neste ano uma festa com convidados menos conhecidos não deu certo –e isso não tem a ver com qualidade literária ou intelectual dos autores.

É preciso registrar o trabalho de pesquisa da curadoria para buscar uma programação fora do eixo. Sempre que festivais literários são criticados pela pouca representatividade, eles costumam se esquivar dizendo serem apenas um reflexo do catálogo das editoras.

A Flip mostrou, assim, que é possível desligar o piloto automático. Estas eram as qualidades dadas a priori. Mas, passada a festa, vê-se que, na prática, problemas atrapalharam a evolução do projeto proposto inicialmente.

O evento –que tem lá sua dimensão de espetáculo– sofreu com falta de entrosamento ou incompatibilidade de perfis entre debatedores em parte das mesas. Mediações ruins em debates importantes também contribuíram.

O encontro entre Marlon James e Paul Beatty no sábado ilustra as fragilidades. Os dois lançaram no país romances elogiadíssimos, que renderam a ambos o Man Booker Prize.

Mas, enquanto James tratou de forma perspicaz as questões literárias trazidas à tona, Beatty não desenvolveu suas ideias, iniciando grande parte de suas respostas com um "eu não sei", quando não seguia um raciocínio tortuoso.

O encontro entre Deborah Levy e William Finnegan, bem como o de Carlos Nader e Diamela Eltit, eram apostas certas, mas também não decolaram. Houve mediações marcadas por perguntas genéricas (em uma mesa, autores foram questionados sobre o que era verdade em seus livros).

Os momentos em que a Flip revela toda a sua dimensão de espetáculo –criticada, mas essencial para seu sucesso como projeto turístico e comercial– também foram poucos.

"Essa crítica de não haver mesa de destaque tem a ver com termos trazido autores que não se enquadram no padrão do mercado, mais desconhecidos", diz Joselia Aguiar, curadora da Flip. "Com o autor mais conhecido você entra em outro nível de interação."

Em 2017, a escalação da Flip trouxe um recorde de mulheres. Elas eram 23, ante 22 homens. Os negros representavam 30%. A literatura de língua inglesa, sempre estrela da festa, desta vez estava bem menos presente.

Entre os convidados, além de Beatty e James, os únicos a escrever no idioma eram Finnegan e Levy.

PÚBLICO E DESTAQUES

O público pagante parece não ter se empolgado com a programação. Na igreja, onde os ingressos custavam R$ 55, era comum ver lugares vazios entre as 450 cadeiras e saída de pessoas no meio do debate. Já na tenda do telão, com 700 lugares, ocorria o contrário –cheia, com público vibrante. A Flip diz que passaram 20 mil pessoas pela festa literária neste ano –em 2016, foram 23 mil.

As redes de ativismo negro se mobilizaram para comparecer à "Flip da diversidade". Na mesa da escritora Conceição Evaristo, a plateia era mais negra do que em qualquer outro debate.

Houve grandes momentos na festa. A começar pela abertura, com aula dramatizada de Lilia Moritz Schwarcz e Lázaro Ramos sobre Lima Barreto. A novidade substituiu a tradicional conferência sobre o autor homenageado.

O encontro entre Noemi Jaffe e Scholastique Mukasonga comoveu o público.

Outro momento a ser lembrado é a intervenção da professora aposentada Diva Guimarães na mesa com Lázaro Ramos e Joana Gorjão Henriques. Ela levou ator e público às lágrimas ao contar como enfrentou o racismo e virou uma celebridade instantânea.

Em nota dissonante, o escritor carioca Anderson França precisou cancelar sua participação na programação paralela após receber uma ameaça de morte –ele havia denunciado mensagens de ódio.

IGREJA

A igreja funcionou como espaço para os debates principais e deixou vivo o movimento na praça da Matriz –mas o aperto, a visibilidade e a acústica do templo foram problemáticos. O formato de anfiteatro da tenda, não montada neste ano, ajudava quem estava nas fileiras do fundo.

A Flip optou por usar o templo católico por falta de verba. O orçamento da festa vem diminuindo R$ 1 milhão a cada ano, desde 2014, e desta vez foi de R$ 5,8 milhões –50% de patrocínio via Lei Rouanet.

Do total, R$ 3,7 milhões são despesas do evento em si, e os demais são custos fixos da Casa Azul, organização que produz o evento.

NÚMEROS DA FESTA - A verba e o público da Flip, em R$ milhões

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O QUE FOI BEM NA FLIP

  • O depoimento de dona Diva sobre racismo
  • A abertura do evento, misturando textos de Lima Barreto e pílulas biográficas sobre ele
  • As mesas que trataram da obra do autor homenageado
  • O encontro com a escritora mineira Conceição Evaristo
  • A mediação de Anabela Mota Ribeiro para o debate entre Noemi Jaffe e Scholastique Mukasonga
  • Apesar dos problemas de acústica da igreja, as performances poéticas do Fruto Estranho, sessão que estreou neste ano
  • A abertura da programação a editoras independentes

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O QUE FOI MAL NA FLIP

  • A formação de duplas de escritores com perfis muito diferentes, dificultando o diálogo
  • Pautas ativistas dominaram o evento, sem que houvesse aprofundamento
  • Mediações fracas em algumas das mesas mais esperadas
  • A acústica ruim e a iluminação chapada da igreja
  • Debate literário ficou em segundo plano diante do protagonismo de discussões sociológicas
  • Um dos escritores mais aguardados, o americano Paul Beatty fez apresentação apagada e desconexa
  • A truculência da Guarda Municipal no episódio do confisco de mercadoria dos ambulantes

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