Folha de S. Paulo


Israelenses e palestinos se encontram no documentário 'Hotel Everest'

Divulgação
Palestina e israelense em praia de Tel Aviv em cena do documentário 'Hotel Everest
Palestina e israelense em praia de Tel Aviv em cena do documentário 'Hotel Everest'

Filho de sobreviventes do Holocausto, Eden Fuchs, 57, atuou no Exército de Israel por mais de 25 anos e se aposentou como coronel.

Apesar de sempre ter vivido perto da Palestina, ele nunca havia se encontrado com um morador do território até completar 45 anos.

Filho de habitantes de um campo de refugiados, o palestino Ibrahim Issa, 47, tinha 14 anos quando foi atingido por um tiro de um soldado do país vizinho. No hospital, porém, foi socorrido por um médico israelense e recebeu apoio de um amigo também nascido em Israel.

Hoje grandes amigos, Eden e Ibrahim estão entre os principais nomes do documentário "Hotel Everest", dirigido pela brasileira Claudia Sobral. O filme ganha primeira exibição na América Latina no Festival de Cinema Judaico de São Paulo, com programação até 8 de agosto.

Eden e Ibrahim são gerentes no Oriente Médio da organização humanitária CEF (Center for Emerging Futures), cuja sede fica nos EUA.

No hotel Everest, em Beit Jala, cidade da Cisjordânia, a CEF promove encontros entre palestinos e israelenses para quebrar as resistências que persistem lado a lado.

São essas reuniões informais o tema do filme da documentarista e antropóloga Claudia Sobral, 52, que vive em Los Angeles (EUA).

Em 2012, a diretora, integrante da terceira geração de uma família de sobreviventes do Holocausto, lançou seu primeiro documentário, "Os Fantasmas do Terceiro Reich", sobre descendentes de oficiais nazistas.

Com 40 minutos, "Hotel Everest" é seu segundo filme.

Nos dias seguintes às exibições em São Paulo, o novo documentário será apresentado no Rio, em Curitiba e em Porto Alegre.

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Folha - Por que o interesse pelo conflito entre israelenses e palestinos?
Claudia Sobral - Me interessa como pessoas de diferentes culturas e origens encontram formas de se relacionar e de criar novos mundos para si e para suas comunidades.
Também estou interessada em indivíduos que vivem num contexto de guerra e ainda assim estão dispostos a se arriscar para encontrar conexão com a humanidade do "outro".
Este foi o tema principal do meu primeiro documentário, "Os Fantasmas do Terceiro Reich". Uma viagem a Berlim em 2006 despertou a minha curiosidade sobre as experiências de vida de descendentes de nazistas.
Como sou a terceira geração de uma família de sobreviventes do Holocausto, havia um interesse pessoal. "Hotel Everest" é, então, uma evolução natural do meu trabalho.

Como conheceu o Center of Emerging Futures (CEF) do Oriente Médio?
Em 2013, fui a Israel a procura de ativistas da paz dos dois lados. Me interessavam as histórias deles e os trabalhos que realizam juntos.
Conheci [o israelense] Eden Fuchs, militar de carreira aposentado que se tornou um ativista da paz. Ele me contou sobre seu envolvimento com o CEF, primeiro como voluntário e depois como co-diretor das atividades no Oriente Médio.
Tive a chance também de conhecer [o palestino] Ibrahim Issa em Nova York.
Também achei fascinante que Whit Jones, um psicólogo aposentado de Idaho, nos EUA, fosse o principal líder desta iniciativa. "O que acontece no Oriente Médio nos afeta muito. É o futuro dos nossos netos, é o futuro de todos", ele me disse.

O CEF coloca em contato israelenses e palestinos, que acabam se tornando amigos. O que mais te chamou a atenção nas iniciativas para promover essa aproximação?
Há o Two Neighbors [duas vizinhas, em inglês], uma cooperativa formada por mulheres israelenses e palestinas para o design e a produção de vestuário. Outras iniciativas são as viagens conjuntas, em que jovens israelenses e palestinos aprendem sobre seu passado, incluindo visitas ao Museu do Holocausto em Jerusalém e a um campo de refugiados palestinos.
Nas reuniões, os participantes são encorajados a partilhar suas experiências pessoais e aí se cria um ambiente que inspira segurança para se conhecer, dividir seus medos mais íntimos e fazer as perguntas mais difíceis.

O CEF trabalha com grupos de algumas dezenas de pessoas. A ação é positiva, mas não é muito pontual? Para haver resultado mais efetivo, não teria que atender milhares de pessoas? 
Nós todos gostaríamos que o programa tivesse um alcance maior. Aliás, eu fiz essa pergunta a Eden e Ibrahim.
"Se minha filha fala aos amigos israelenses sobre amigos palestinos e eles entendem ('os palestinos não são aquilo que pensávamos'), essa experiência vale 30 anos de trabalho", disse o Eden.
O Ibrahim respondeu o seguinte: "Ao envolver tantas pessoas quanto possível, ao promover vínculos entre elas, abrindo a possibilidade de parcerias, nós não só lidamos com o conflito, mas também criamos uma nova geração de palestinos e israelenses que acreditam na paz, o que ajudará os políticos a chegar a um acordo em algum momento".
Considere que os participantes deste programa provavelmente partilharão sua experiência com amigos e familiares. A mudança de percepção começa a acontecer.
É importante sublinhar que o principal objetivo é formar alianças que contribuam para o fim da ocupação e para construir um futuro de liberdade, dignidade e igualdade. A meta não é normalizar a ocupação [neste momento].

Qual foi o momento mais difícil para você e sua equipe ao longo da realização do filme?
Seis meses após o início das filmagens, em meados de 2014, a violência eclodiu no que ficou conhecido como guerra na Faixa de Gaza. O medo, a desconfiança e o desespero caíram pesadamente sobre as vidas dos nossos protagonistas.
Essa nova realidade me levou a questionar: o meu filme poderia transmitir qualquer mensagem autêntica de paz em tempos tão tenebrosos?
Me dei conta de que esse cenário terrível apenas reforçava a necessidade de dar voz ainda mais forte a indivíduos comprometidos com uma realidade alternativa.
Outra questão surgiu durante as filmagens. De que maneira os protagonistas lidam com a pressão social e com o antagonismo por parte de suas próprias famílias e amigos por se envolverem com o "inimigo"? Eles enfrentam constantemente as consequências de suas escolhas, na vida pública e na pessoal. É um preço alto a pagar sem a promessa de uma recompensa imediata.

Vocês chegaram a correr algum perigo?
Não tivemos nenhum problema com o governo israelense nem com a Autoridade Palestina.
Mas estávamos cientes de que o trabalho de Ibrahim com israelenses não era bem visto pelos radicais palestinos. Sempre havia o medo de não poder terminar o filme devido à pressão negativa que Ibrahim sofria.
Eden sofreu pressão em seu círculo também.

De tudo o que você viu em Israel e nos territórios palestinos ao longo das filmagens, o que mais a incomodou?
A expansão dos assentamentos na Cisjordânia, os "checkpoints", os muros, as grades. A falta de liberdade de movimento.
E ainda a falta de perspectiva de um futuro melhor para as crianças que nascem e crescem nos campos de refugiados [palestinos].
A responsabilidade pela melhora da qualidade de vida das pessoas cabe tanto às lideranças palestinas quanto à israelenses. Mas, infelizmente, vivemos numa época em que há um vácuo na liderança de ambos os lados.

Em recente conferência em São Paulo, o escritor israelense Amós Oz disse: "Está começando a fadiga dos dois lados [Israel e Palestina]. Acredito que o cansaço possa contribuir para um acordo entre os povos". Você concorda?
Não há esperança de outra forma. Procuro com meu trabalho amplificar as vozes que trabalham neste sentido dos dois lados. Sou testemunha daqueles que colocam suas vidas em risco, que estão comprometidos com os direitos de ambos os povos.
Eu tenho grande admiração pelo trabalho de autores como os israelenses Amós Oz, David Grossman e o palestino Mahmoud Darwish.
"O primeiro passo em direção a uma paz real deve ser conhecer o outro lado, sua cultura e sua criatividade", diz Darwish.
Aliás, recomendo uma obra fantástica que li durante a pesquisa para o filme. É "Literature and War: Conversations with Israeli and Palestinian Writers" (literatura e guerra - conversas com escritores israelenses e palestinos).

Qual é o seu próximo projeto? 
Estou trabalhando com histórias de mulheres ativistas judias e muçulmanas, com vários níveis de prática religiosa. Nós nos reunimos para estudar passagens do Alcorão e da Torá, conhecer mútuos rituais e tradições. Nesse processo, desenvolvemos amizade e confiança.
A onda de islamofobia nos EUA, promovida pelo atual administração, e o fato de 62% dos americanos não conhecerem um muçulmano criam a oportunidade de construir pontes e romper fronteiras. Como judia, me sinto na obrigação de me erguer contra injustiças e discriminação.

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HOTEL EVEREST
QUANDO exibições na sexta (4), às 16h30, no Cinesesc, e sábado (5), às 16h30, na Hebraica
QUANTO R$ 30 (Hebraica) e R$ 12 (CineSesc)
PROGRAMAÇÃO hebraica.org.br/festival-de-cinema-judaico/


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