Folha de S. Paulo


Em obra feminista, freira recria história de convento proibido

Bruno Santos/Folhapress
PARATY,RJ, BRASIL, 29-07-2017: Mesa Kanguei no Maiki, no quarto dia da 15ª FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Na foto, Maria Valeria Rezende. (Foto: Bruno Santos/ Folhapress) *** FSP-ILUSTRADA *** EXCLUSIVO FOLHA***
Maria Valéria Rezende em mesa da Flip 2017

Maria Valéria Rezende deu de colecionar palavras com cheirinho de naftalina: nau, vilania, varão, infortúnio. É que a escritora e freira, convidada da Flip, quer resgatar uma história muito antiga.

Metida com papéis velhos desde a juventude, ela encontrou, no Arquivo Ultramarino de Lisboa, uma história que ficou ecoando em sua cabeça: em 1790, uma mulher foi processada por criar um convento clandestino em Minas Gerais, no Brasil.

"Não se podia fundar conventos sem ordem da Coroa. Como a maior parte da população era de negros e índios, Portugal queria estimular a reprodução de portugueses, para garantir a fidelidade ao reino", diz Maria Valéria.

No meio dos documentos, achou uma carta dessa mulher, chamada Maria Isabel, se defendendo –uma carta cheia de ironia.

O resto do processo contra Maria Isabel havia se perdido -por isso, a escritora resolveu criar sua história no romance que está escrevendo. Na obra, a personagem escreve uma carta à rainha Maria 1ª.

É seu livro mais "conscientemente feminista". Não à toa, quando comenta sobre os conventos serem proibidos na região em que acontece a história, associa o tema à necessidade do reinado de garantir úteros úteis.

"A Margaret Atwood sabe das coisas...", diz Maria Valéria, referindo-se ao livro "O Conto da Aia", distopia em que as mulheres férteis são escravizadas pelo Estado.

Para recriar esse mundo, não era suficiente imaginar cenas e situações. Era preciso recriá-lo pela linguagem —então ela busca palavras antigas e revira a ordem direta das frases, para construir um idioma possível no século 17, mas compreensível no século 21.

Maria Valéria diverte-se com palavras como um nome antigo que os vagalumes tinham: cagalume, palavra a sugerir como os pirilampos defecam suas luzinhas.
tempo, tempo

Aos 75 anos, ela mal enxerga do olho esquerdo, depois de um derrame na retina. No olho direito, uma catarata progressiva também avança.

Assim, o mundo se divide para a escritora: de um lado, vê nuvens de luz em preto e branco, que se divide com o mundo já pouco nítido do outro lado.

"Estou correndo contra o tempo. Mas digo que é uma vantagem. Quando tem uma lua linda, todo mundo vê só uma, mas eu vejo três!", ri a autora brasileira.

Para poder se dedicar ao romance, ela conseguiu o apoio do Itaú Cultural. Hoje, escreve em um computador com a tela grande, no qual letras brancas se sobrepõem a um fundo colorido.

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A freira reclama que, embora recomendada em colégios, as redes de livrarias não distribuem seus livros no Nordeste (ela vive em João Pessoa). Por isso, Maria Valéria diz que não é best-seller, mas "best xerox".

Também acha que as mulheres —em especial se forem brasileiras- não são tratadas com prestígio no meio literário. "É como se fôssemos as cozinheiras de um grande restaurante de luxo. Sem elas, a comida não existe, mas elas só recebem a gorjeta das comandas. Só que as cozinheiras podem controlar as comandas!", ri, de novo.


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