Folha de S. Paulo


Crítica

Diário do cárcere capta estado de espírito de sociedade sob opressão

SOU EU MAIS LIVRE, ENTÃO (muito bom)
QUANTO: R$ 59 (280 PÁGS.)
AUTOR: Luaty Beirão
EDITORA: Tinta da China

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Ao longo do seu livro "Sou Eu Mais Livre, Então", Luaty Beirão tenta fugir das etiquetas. Ele demonstra estar plenamente consciente do seu lugar na história de Angola.

A trajetória de Luaty até a detenção de cerca de um ano, durante os quais fez uma greve de fome de 36 dias, o número de anos que o seu antagonista, o presidente José Eduardo dos Santos, persistiu em ficar no poder, lembra o roteiro do filme "Diários de Motocicleta", de Walter Salles.

Bruno Santos/Folhapress
Escritor e rapper angolano Luaty Beirão, em Paraty
Escritor e rapper angolano Luaty Beirão, em Paraty

Luaty, 35 anos, afiou os dentes nos movimentos estudantis franceses na universidade de Toulouse. Seguiu caminho para a sua terra natal atravessando por terra um bom pedaço da Europa e África. Morando em Angola, ele se torna um dos principais expoentes da cena cultural da capital, uma mistura de artes, música e, timidamente, alguma política.

Desde o término da brutal guerra civil, em 2002, Angola tem sido controlada por mão de ferro pelo regime autoritário do presidente e seu partido-Estado Movimento Para a Libertação Popular de Angola.

A colossal renda petrolífera do primeiro exportador africano assegura a cooptação das elites, a adesão da minúscula classe média, e a repressão ao resto da população.

O diário de cárcere de Luaty, que compõe grande parte do livro, captura o estado de espírito da sociedade civil esmerada por esse clima sufocante. Uma composição de rimas, versos, desenhos, ritmada por uma escrita nervosa e espontânea permeada por expressões de rua angolanas.

O grande mérito do livro está implícito no título. Ele sabe que a detenção marcou uma virada. Isso liberta-o do fardo de justificar a sua ação por meio de um manifesto político.

Ao invés disso, ele espalha nas suas páginas as milhares de ideias que atravessam simultaneamente a sua cabeça, sobre temas tão variados como Uber, Primavera Árabe, paternidade e sobrevivência.

O resultado é um texto de alta intensidade, que reflete a política externa brasileira. Afinal, o governo brasileiro e a Odebrecht, assessorados por consultores e marqueteiros, participaram decisivamente no disfarce do regime autoritário angolano em uma democracia em construção.

O colapso do preço do petróleo fez ruir essa fachada, e colocou diante dos olhos de todos aquilo que o autor e muitos outros arriscaram a vida denunciando.

Numa entrevista, Luaty sugeriu que o presidente José Eduardo dos Santos, responsável pela sua detenção, é o pai do livro. Nesse caso, o Brasil é o seu padrinho.


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