Folha de S. Paulo


'Escrevo para salvaguardar memória', diz ruandesa Scholastique Mukasonga

Patrick Kovarick - 7.nov.12/AFP
Scholastique Mukasonga após ganhar o Renaudot por 'Nossa Senhora do Nilo', que lança no Brasil
Scholastique Mukasonga após ganhar o Renaudot por 'Nossa Senhora do Nilo', que lança no Brasil

A mãe de Scholastique Mukasonga costumava dizer que filhas tinham a obrigação de proteger o cadáver de uma mãe de olhares estranhos. Mas a escritora ruandesa, 61, não teve a chance de cobrir o corpo de sua mãe morta.

Quando sua mãe morreu, em 1994, durante o genocídio de Ruanda, ninguém estava lá para cobrir com um pano o corpo mutilado. Desde então, Mukasonga tenta fazer de suas palavras uma mortalha para o corpo ausente da mãe e de seus outros 26 familiares assassinados.

Em pouco mais de três meses, entre abril e julho daquele ano, 800 mil pessoas foram massacradas no país –na maioria da etnia tútsi, vítimas do governo hutu.

Cerca de 70% da população tútsi do país foi exterminada. Mukasonga –que participa na noite desta quinta de mesa da Flip, ao lado de Noemi Jaffe–, sobreviveu porque havia se mudado dois anos antes para a França, onde vive até hoje. Fora uma das poucas tútsis que conseguiram seguir com os estudos.

Mukasonga precisou de dez anos após o genocídio para voltar ao país e achar forças para escrever e publicar.

Quando esteve na aldeia Gitagata, para onde sua família foi deportada nos anos 1960, não restava nada.

"Não só os assassinaram mas queriam negar até sua existência, diz Mukasonga à Folha, por e-mail. "Meu dever era testemunhar a existência deles; construí através dos meus livros o túmulo que foi recusado a eles."

A editora Nós acaba de publicar no Brasil os dois primeiros livros da autora no país. O autobiográfico "A Mulher de Pés Descalços", de 2008, é dedicado à mãe de Mukasonga e fala da infância e adolescência da autora em meio à opressão e discriminação de que eram vítimas os tútsis em Ruanda.

"Escrevo para salvaguardar a memória dos meus: é disso que tiro a coragem para sobreviver", diz.

A Nós também publica seu primeiro romance, "Nossa Senhora do Nilo", de 2012, que ganhou vários prêmios, entre eles o prestigiado Renaudot.

Passado em uma escola de meninas na Ruanda sob governo hutu, retrata toda a competição e as mesquinhezas das adolescentes.

No colégio Nossa Senhora do Nilo, existe uma cota para as tútsis, que não podem ser mais do que 10% do total de alunas. O romance pode ser lido como uma representação do microcosmo que acabou gerando o genocídio.

"Embora se baseie em fatos reais (o liceu Nossa Senhora do Nilo é muito parecido com o liceu Nossa Senhora de Citaux, onde estudei), a ficção permite a distância necessária para desenvolver a escrita. O romance permite ampliar o campo, abordar assuntos que a autobiografia não permitiria."

Mesmo tratando de temas trágicos, a escritora consegue introduzir o humor em suas narrativas. Segundo Mukasonga, trata-se de um traço cultural dos ruandeses.

"O ruandês lida muito bem com o humor, mesmo que seja sobre si próprio. A ironia é característica da nossa cultura. Sempre achei que o leitor não precisava ser oprimido pelo horror, que ele pode também saborear nos meus livros o prazer inocente da leitura."

A escritora tem visitado Ruanda frequentemente. O país, segundo ela, vive um período de reconciliação e de boom econômico.

Mas, segundo ela, basta percorrer o mapa para que vejamos como não se aprendeu nada com o genocídio, mais de 20 anos depois. "As pessoas se esquecem rapidamente e não tiram do passado as verdadeiras lições."

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A MULHER DE PÉS DESCALÇOS / NOSSA SENHORA DO NILO
AUTORA Scholastique Mukasonga
TRADUÇÃO Marília Garcia
EDITORA Nós
QUANTO R$ 35 ("A Mulher...", 160 págs.); R$ 45 ("Nossa Senhora do Nilo", 264 págs.)

NA FLIP
MESA 6 - EM NOME DA MÃE
ESCRITORAS Scholastique Mukasonga e Noemi Jaffe
QUANDO 27/7, às 21h30
ONDE Auditório da Matriz, Paraty; transmissão no site do evento

PÓS-FLIP
ENCONTRO FOLHA COM A AUTORA EM SP
QUANDO 2/8, a partir das 17h
ONDE Livraria Saraiva do shopping Pátio Higienópolis (av. Higienópolis, 618, São Paulo, tel. (11) 3660-0200)


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