Folha de S. Paulo


CRÍTICA

'Dunkirk' mostra que cinema ainda pode expandir nossa percepção

DUNKIRK (ótimo)
DIREÇÃO Christopher Nolan
ELENCO Fionn Whitehead, Damien Bonnard, Aneurin Barnard
PRODUÇÃO EUA, 2017, 14 anos
Veja salas e horários de exibição.

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Um filme de guerra em que quase não há sangue. Tampouco vísceras expostas, braços e pernas despedaçados ou o clássico último suspiro do soldado nos braços de um colega de inferno. Christopher Nolan depurou esses ingredientes tradicionais do gênero para alcançar a meta de ter o mundo a seus pés.

O diretor britânico vem, há quase duas décadas, conquistando uma legião. Uma parcela menor e menos entusiasmada manteve-se reticente, detectando ali mais malabarismos do que revolução.

Fãs e críticos, porém, concordam num ponto: os filmes de Nolan têm uma ambição cinematográfica, o que é estimulante num momento em que muitos só enxergam o futuro na tela da TV.

"Dunkirk" reitera o prazer do cineasta em testar sua originalidade confrontando-se com os códigos estabelecidos do cinema de gênero. Depois de inverter o policial, bagunçar o heroísmo de um ícone das HQs e rejuntar física e metafísica na ficção científica, Nolan aborda um gênero pouco maleável e que acumulou um histórico de grandezas –graças a Renoir, Hawks e Kubrick, para abreviar um longuíssimo "name-dropping".

Em busca de um encaixe nesse panteão, Nolan propõe outros pontos de vista. Sua guerra deixa de ser uma situação-limite na qual a moral aparece exposta e estraçalhada como os corpos. "Dunkirk" também não contrapõe o discurso antibelicista ao voyeurismo sádico. Nem insiste na mitologia do heroísmo militar, preferindo conduzir nossa empatia na direção do homem desarmado.

Essa ideia de perspectiva é essencial ao filme, que não a associa a um protagonista, mas a alterna conforme o ângulo da ação: no centro, acompanhando um jovem soldado, do alto, com um piloto audaz, e à distância, junto ao pai que ruma com os filhos num pequeno barco. Não só um filme de guerra, mas muitos.

À oscilação espacial corresponde a variação temporal, com pedaços narrativos que dão ao espectador o prazer de montar um quebra-cabeças. Essas soluções se completam com uma construção sônica e musical que desorienta sensorialmente e potencializa a proposta de imersão.

Os nostálgicos vão se perguntar onde estará o cinema em meio a tanta saturação. Resposta: no espetáculo. Nolan junta o século 19 no 21 demonstrando que o cinema –ainda– tem poderes para expandir nossa percepção.

Não só alegoria pró ou anti-"brexit", "Dunkirk" é também uma máquina de guerra contra a qual nem Netflix nem PlayStation têm –ainda– arsenal para derrotar.


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