Folha de S. Paulo


Crítica vê surgir filmes sem susto fácil, 'o pós-terror'; cineastas reagem

Josué Souza/Divulgação
Marjorie Estiano e Isabél Zuaa em 'As Boas Maneiras', de Juliana Rojas e Marco Dutra
Marjorie Estiano e Isabél Zuaa em 'As Boas Maneiras', de Juliana Rojas e Marco Dutra

Não há susto fácil nem maldições anunciadas por velhos sinistros ou sangue que jorra feito suco. Mas há vazio existencial, fantasmas sofredores e bodes endemoniados.

Em texto publicado no começo do mês, Steve Rose, crítico de cinema do jornal inglês "The Guardian", batiza de "pós-terror" essa nova safra de filmes do gênero que agradam a crítica, mas não o público acostumado a clichês de longas rasteiros de horror. O texto gerou furor entre cinéfilos e dividiu a crítica.

Entram no rótulo do "pós-terror", segundo Rose, os títulos "A Bruxa" (2015), o recém-lançado "Ao Cair da Noite" e "A Ghost Story" (sem previsão de estreia), que têm em comum o fato de não se fiarem a convenções.

O primeiro, um filme de época sobre bruxaria, pouco se apoia em perseguições ou sustos gratuitos; o segundo, uma trama sobre um mundo pós-apocalíptico, gerou ira no Brasil e lá fora –houve quem fosse às redes sociais reclamar que havia sido "enganado", já que o trailer dava a entender que se tratava de um "terror de verdade".

Caso mais notório, o último traz Casey Affleck embrulhado num lençol, tal como a representação mais barata de um fantasma, vivendo um espectro angustiado. Quem mais sofre no longa é ele, o vulto que justamente deveria ser a fonte do pavor alheio.

"O que acontece quando se afasta das rígidas convenções e se deixa perambular pela escuridão?", indaga Rose em seu artigo. E palpita: "Você pode encontrar algo até mais assustador. Ou algo que nem assustador é. O que pode estar emergindo aqui é um subgênero."

'BEBÊ DE ROSEMARY' PAULISTANO

Por seus critérios, Steve Rose também incluiria entre o "pós-terror" obras de três diretores brasileiros autorais que terão seus longas exibidos em mostras estrangeiras em agosto.

Juliana Rojas e Marco Dutra lançam no Festival de Locarno, na Suíça, o inédito "As Boas Maneiras", uma espécie de "O Bebê de Rosemary" paulistano.

E Gabriela Amaral Almeida verá seu "Animal Cordial", horror de tintas sociais, estrear no Fantasia Film Festival, importante mostra dedicada ao cinema de gênero que acontece em Montréal.

Os três diretores discordam do novo rótulo cunhado por Rose.

"É reducionista, dá a entender que os códigos do terror são rígidos e que filmes mais tradicionais não têm qualidade", rebate Rojas, para quem o rótulo de Rose reflete "preconceito contra o gênero".

"Notam que alguns filmes têm qualidade dramatúrgica e não aceitam que sejam de terror, daí o renomeiam", diz.

Após Locarno, seu "As Boas Maneiras" deve passar por festivais brasileiros e estrear entre final de 2017 e início de 2018. Na cena a que a Folha assistiu, a personagem de Marjorie Estiano, grávida, cruza ruas em direção à luz de uma Lua que paira expressionista sobre os arranha-céus.

Isabél Zuaa ("Joaquim") faz a babá do bebê que, tudo leva a crer, será um monstro.

"Queríamos falar de maternidade e do abismo social de São Paulo num filme que tivesse horror", diz Dutra. "Mas nunca discutimos se uma cena tem terror o suficiente."

A dupla de diretores costuma explora o sinistro por trás de mercadinhos de bairro e apartamentos lúgubres, como em "Trabalhar Cansa" (2011). "O que me interessa é olhar o cotidiano e ver o que há de bizarro", afirma Dutra.

O diretor cita outros cineastas que também tiveram no terror um veículo para tratar de questões subjacentes, caso do americano George Romero, morto no último dia 16: "Ele usava os zumbis para falar de mal-estar urbano", diz.

O HORROR NO COTIDIANO

Diretora de "O Animal Cordial" (sem data de estreia), Gabriela Amaral Almeida também recheou de terror uma trama de tintas sociais.

"Sou um sujeito político, com opinião sobre o mundo que me rodeia", diz. "E abordo o que me rodeia por meio do medo, que tem a ver com o tipo de arte que consumo."

Numa cena-chave do filme -um roubo a restaurante-, abismos econômicos ficam claros nos diálogos do dono do lugar (Murilo Benício) e do funcionário (Irandhir Santos).

O longa, uma espiral de violência que decorre desse assalto, vai tratar de como os personagens "perdem a humanidade", afirma a diretora.

E como fica o público dos multiplex nessa equação?

"É natural que estranhe", diz Gabriela, que cita obras de feitas pelo polonês Andrzej {uBawski como exemplos. "É o que acontece quando o filme de terror se apresenta com novas cartas, feitas por realizadores com pé no cinema de arte."

Produtor tanto do nacional "O Animal Cordial" quanto do americano "A Bruxa", o brasileiro Rodrigo Teixeira é outro que repele o rótulo.

"Acho que existe um tipo de filme de terror que faz terror com menos clichês como uma opção de subverter o gênero de uma maneira inteligente e isso também atrai publico", diz Teixeira, que elenca Roman Polanski e Stanley Kubrick como outros grandes cineastas que enveredaram o gênero.

Sem se apoiar no susto fácil, os diretores debatem sobre a fonte de onde brota o terror. Dutra levanta a bola de medos sociais (racismo, diferenças de classe); Rojas fala do medo do desconhecido e das pulsões que há em cada um.

"Só não brota da mera vontade de usar os elementos", diz Almeida. "Ou então criar um trem fantasma bastaria."


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