Folha de S. Paulo


Eduardo Kac cria a primeira obra de arte contemporânea no espaço sideral

É de uma solidão brutal. Uma escultura de papel flutua pelos módulos vazios de uma nave espacial até chegar a uma janela com vista para a curvatura azul da Terra e a escuridão do espaço ao fundo.

Num filme gravado com câmeras da Estação Espacial Internacional, Eduardo Kac flagra o que seria a primeira obra de arte contemporânea criada além dos limites da atmosfera terrestre em sua estreia na mais inóspita das galerias.

Seu esforço monumental -mais de uma década de estudos- contrasta com a simplicidade do trabalho. São só duas folhas brancas, uma recortada e outra enrolada feito um canudo, atravessando a primeira. Quando flutuam em gravidade zero, elas soletram a palavra francesa "moi" -um singelo "eu", em português.

Divulgação
Escultura de Eduardo Kac na Estação Espacial Internacional
Escultura de Eduardo Kac na Estação Espacial Internacional

"De um ponto de vista, você vê essa palavra e do outro uma imagem estilizada de uma figura humana com o cordão umbilical cortado", diz o artista. "O trabalho se articula a partir de elementos da arquitetura da estação espacial, o plano, que são os painéis solares, e o cilindro, que são os módulos. Isso evoca nossa libertação do planeta Terra."

Mas Kac, um brasileiro radicado em Chicago, precisou estabelecer uma relação quase umbilical com Paris, onde travou contato com a agência espacial francesa, para desenvolver seu projeto mais ambicioso. Lá, ele conheceu o astronauta Thomas Pesquet, que treinou para construir sua escultura em órbita.

Nos seis meses que passou em missão no espaço, Pesquet dedicou um tempo a executar a ideia do artista. Ele não aparece no filme, que estreia agora no país na galeria Luciana Caravello, no Rio, mas suas mãos estão lá, recortando e dobrando as folhas de papel a uma distância de 400 quilômetros da Terra.

"Disse a ele que, a partir daquele momento em que fabricasse o trabalho, ele não seria mais o produtor e sim o espectador", conta o artista. "Seria o momento de descobrir, explorar e vivenciar o trabalho."

Mesmo um tanto solitária, essa experiência artística espacial carrega, na visão de Kac, um significado para toda a humanidade. "Toda a arte que conhecemos, dos homens das cavernas até Jackson Pollock, foi subjugada pela gravidade. A tinta não fica na tela se não existisse essa força", ele afirma. "A questão que se coloca é que tipo de arte ou poesia poderia surgir se essa questão fosse superada."

Kac, que ficou famoso por implantar um microchip no tornozelo e depois por criar em laboratório um coelho fluorescente, que no escuro brilhava num intenso tom de verde, já vinha pensando nisso há pelo menos três décadas.

Nos anos 1980, escreveu uma série de poesias em hologramas, com palavras que flutuavam no espaço e podiam ser lidas em ordens distintas, formando versos que mudavam de sentido dependendo da posição do espectador.

Desde essa primeira tentativa de romper com a gravidade, que aprisiona as palavras sobre a página de papel, Kac nunca mais desistiu de inventar obras livres da rigidez terrestre. Há dez anos, passou a criar murais impressos sobre o teto de museus que pudessem ser lidos por satélites orbitando o planeta a 700 quilômetros de distância.

"Queria pensar uma obra na escala do planeta", diz Kac. "A linguagem escrita obedece à lógica da gravidade, mas as minhas palavras não têm peso nem limite físico e por isso podem se transformar."

Um exemplo dessa transformação é um alfabeto animado que criou com base na silhueta verde da coelhinha Alba. "A quantidade de discurso gerado em torno da coelha é colossal", diz Kac. "Isso então virou a matriz de um discurso visual, um sistema que permite a expressão de todas as maneiras possíveis."

No caso, são variações a partir do formato do bicho que parecem flutuar de modo aleatório em animações, mas ao contrário de um desenho tradicional, construído traço a traço, essa é uma constelação de signos já prontos que se movimentam para todos os lados, mas sempre remetem a seu enigmático coelho.

Quase duas décadas depois daquele experimento, que, no ano 2000, já parecia algo de ficção científica, Kac celebra agora sua verdadeira conquista espacial, um esforço que coroa seu desejo de leveza e desapego total.
Ou talvez todas essas obras sejam só um reflexo de sua consciência da "fragilidade coletiva do planeta", algo que notou quando a erupção de um vulcão na Islândia há sete anos paralisou o tráfego aéreo.

Mesmo que um dia Kac também vá ao espaço e se veja livre da gravidade, o chip até hoje implantado em seu corpo carrega fotografias de sua família, um elo com a Terra que ele fez questão de manter. "Qualquer um pode escanear minha perna e ter acesso a isso", diz o artista. "A pele que nos separa do ambiente não é mais uma barreira."

EDUARDO KAC
QUANDO abre na qui. (20); de seg. a sex., das 10h às 19h; sáb., das 11h às 15h; até 19/8
ONDE galeria Luciana Caravello, r. Barão de Jaguaripe, 387, Rio, tel. (21) 2523-4696
QUANTO grátis


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