Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Zumbis de Romero tinham mais cérebro (ops) do que os de hoje

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Cena de A Noite dos Mortos Vivos, de George A. Romero ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Cena de "A Noite dos Mortos-Vivos", filme clássico de 1968 de George A. Romero

Poucos cineastas podem ser chamados de criadores de um bem-sucedido subgênero cinematográfico. George A. Romero é um deles.

O filme de zumbi não nasceu por suas mãos. Se hoje séries de TV e longas cheios de efeitos em Hollywood abundam, contudo, a responsabilidade é de Romero, morto aos 77 anos neste domingo (16).

Tecnicamente, o gênero emerge com "Zumbi Branco", longa de 1932 pontificado por ninguém menos do que Bela Lugosi, que um ano antes lançara o primeiro Drácula aristocrático do cinema –aliás vivido na cinebiografia "Ed Wood" (Tim Burton, 1994) por Martin Landau, brilhante ator também morto neste domingo aos 89 anos.

Lá, como nas décadas seguintes, o estereótipo do morto-vivo estava mais ligado à leitura assustada e preconceituosa que ocidentais faziam de facetas mais obscuras do vodu afro-caribenho praticado no Haiti.

Falava-se mais de pessoas em transe, algo que só voltaria a ser abordado no "mainstream" hollywoodiano em 1988, por Wes Craven no seu "A Serpente e o Arco-Íris" (traduzido medonhamente por aqui como "A Maldição dos Mortos-Vivos").

O zumbi como o conhecemos surgiu com "A Noite dos Mortos Vivos", de 1968, de Romero. O filme é revolucionário em vários aspectos. É brutal, um festim sanguinolento explícito que amplificava à enésima potência o desafio estético da produtora britânica Hammer e seus filmes de Drácula ao recato então vigente no mercado.

Nele, filhos devoram os pais, literalmente. O antimilitarismo em plena Guerra do Vietnã dá o tom, mas é a denúncia do racismo norte-americano que ficou para a história. Ela nunca fez parte do roteiro ou da escolha de atores, alegava Romero, mas uma fita na qual o herói é um negro que se sobrepõe a todo o elenco de brancos covardes só para acabar morto por uma figura de autoridade fala por si só.

A crítica social voltaria mais incisiva em episódios posteriores da série, com o consumismo, o elitismo e o horror em relação ao outro dando o subtexto para o desfile de maquiagens mais ou menos baratas e passos arrastados.

Esse "template" de como deve ser um morto-vivo sofreu atualizações. Primeiro, o mistério algo vago sobre a origem do mal que gera os zumbis ganhou progressivamente contorno de experiências militares e chegou aos anos 2000 na forma do clichê da pandemia de algum vírus –estão aí "Extermínio" (Danny Boyle, 2003) e "Guerra Mundial Z" (Marc Forster, 2013) para comprovar.

Essa linha evolutiva também transformou as carcaças que esbarravam umas nas outras nos filmes de Romero para cada vez mais ágeis e infernais zumbis. Os dois filmes do parágrafo anterior e "Eu Sou a Lenda" (Francis Lawrence, 2008) demonstram bem essa transformação.

Uma curiosidade: talvez o traço mais caricato associado aos zumbis, a predileção por uma dieta à base de cérebros humanos, não é obra de Romero. A figura do morto-vivo grunhindo "Céééérebrosss" só apareceria numa comédia de horror de 1985, "A Volta dos Mortos Vivos" (Dan O´Bannon). Mas colou até hoje.

O subgênero, que irrompeu na TV paga do século 21 com "The Walking Dead", rivaliza com seu irmão mais velho e nobre, o do filme de vampiro, como um dos mais populares e perenes do cinema. O motivo, talvez, seja o fato de que ele geralmente fala diretamente à inadequação do tempo de sua audiência.

Romero se queixava de que o filme de zumbi havia se tornado muito caro de fazer, o desestimulando de criar mais. Ele tinha razão, o que era uma pena: quaisquer dez minutos feitos com alguns dólares trocados de "A Noite dos Mortos Vivos" contêm muito mais pasmo e cérebro (ops) do que astros de Hollywood fugindo de seus zumbis anabolizados.


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