Folha de S. Paulo


Matthew Barney cria rio de fezes em filme sobre desilusão com a América

O inferno de Matthew Barney é um rio de merda transbordante de onde saem seres reencarnados folheados a ouro. A carne dos banquetes fervilha cheia de larvas, homens são castrados em lutas sangrentas e renascem do ventre de vacas mortas, enquanto rituais fúnebres envolvem belíssimos carros derretidos.

Seu mais novo filme, "River of Fundament", que estreia agora no país, é uma tortura -ou delírio- visual de quase seis horas de duração.

Talhado para estômagos fortes, o épico do artista ex-marido da cantora Björk é uma alegoria -hiperbólica e impiedosa- da América, em que o lado mais podre da maior potência do planeta se manifesta no culto à macheza, do metal fundido dos automóveis a reinvenções do sexo anal.

Divulgação
Matthew Barney em cena de seu filme 'River of Fundament', que estreia agora no Brasil
Matthew Barney em cena de seu filme 'River of Fundament', que estreia agora no Brasil

"Minhas histórias passam por minha experiência como homem, então uma parte do que eu faço é autobiográfica e outra parte tem mais a ver com questões estéticas", diz o americano. "Nunca deixei de usar meu próprio corpo como um filtro que transforma os enredos, então é inevitável falar em masculinidade."

Barney, de fato, acabou se firmando como um dos maiores nomes da arte contemporânea com outra obra de virilidade acachapante. "Cremaster", série de cinco filmes batizada com o nome do músculo que sustenta os testículos, desconstrói com altas doses de surrealismo alguns mitos fundadores dos Estados Unidos.

Um dos episódios do ciclo, rodado numa réplica da famosa torre da Chrysler, em Nova York, mostra carros da marca se chocando uns contra os outros num estonteante saguão art déco -a violência de seu país traduzida ali num embate resplandecente.

"Meu interesse sempre se voltou para o corpo, mas os carros são ao mesmo tempo um espaço arquitetônico fechado e uma partícula capaz de atravessar paisagens distintas", diz o artista. "Os carros funcionam numa série de escalas, e é mais difícil fazer isso com o corpo humano."

No filme que veio depois, sua relação com os automóveis se torna mais visceral, com carrocerias metálicas servindo de metáfora para o corpo morto e reencarnado. Barney revestiu tudo isso com um dramatismo ainda maior ao rodar cenas de destruição automobilística em Detroit, meca decadente das montadoras americanas.

"Lá atrás, pensei duas vezes antes de ir a Detroit, mas tudo parecia ficar mais claro lá", conta Barney. "A cidade é um livro aberto, e a narrativa do declínio é explícita ali, por isso ela me atraiu tanto."

Um descampado arruinado, essa que já foi a terceira maior metrópole americana até a crise econômica arrasar sua indústria ressurge em "River of Fundament" como versão urbana do submundo cloacal que seus mortos de ferro são condenados a atravessar para chegar a uma vida nova no paraíso.

Morte e ressurreição, na narrativa de Barney, tomam como ponto de partida o livro "Noites Antigas", de Norman Mailer, que ambientou seu enredo fantástico, de faraós reencarnados e hipersexualizados, no Egito de mais de um milênio antes de Cristo.

O artista já havia escalado o escritor morto há dez anos para um dos filmes da série "Cremaster" e ganhou de presente uma cópia do romance, que achou brilhante, mas "direto demais" para seu gosto.

Talvez por isso Barney tenha levado quase uma década para arquitetar todo o universo visual de sua adaptação do livro de Mailer, um dos maiores escritores americanos e pilar do jornalismo literário.

Uma parte da estrutura, no entanto, foi mantida como espinha dorsal de "River of Fundament". Tal como no romance, quase toda a trama rocambolesca do filme gira em torno dos acontecimentos de uma única noite. No filme, é o velório de Mailer, em que amigos do autor, entre eles artistas contemporâneos como Lawrence Weiner, conversam sobre sua vida e obra literária.

PORCOS E VACAS
Deuses reencarnados, seus corpos meio em putrefação, rondam a mesa, que tem como prato principal um leitão também em estado avançado de decomposição.

Barney, que fez da estética do choque e do grotesco uma espécie de marca, foi brutal até com seus atores, forçando o elenco a contracenar com o bicho morto de verdade. A vaca, de onde sai o filho de Mailer, que vive o próprio pai no filme, também era real.

"Meu trabalho tem a ver com a ideia de equilibrar real e artificial, então ter essas coisas no set era um obstáculo de verdade, que exige que todos deixem de lado qualquer maneirismo", diz o artista. "Isso traz outra dinâmica para os atores, faz com que eles repensem sua atuação."

Esse dado de realidade também está nas sequências mais impressionantes de "River of Fundament", como o momento em que quantidades industriais de ferro fundido são derramadas numa fôrma enorme.

Barney filmou essas cenas mais espetaculares como performances orquestradas em tempo real diante de plateias em Los Angeles, Nova York e Detroit. As câmeras foram escondidas, para não desviar a atenção dos espectadores.

Ele conta que o fato de ter realizado outro filme em pleno Carnaval de Salvador -com um ator pelado penetrando as engrenagens de um trator- serviu de preparo para o novo projeto quase hollywoodiano em escala.

"Sou um artista inquieto, estou sempre mudando meus hábitos", diz Barney. "Obras de arte são vistas só como imagens, então queria criar uma situação que dependesse da experiência de estar ali. Isso deu sentido de urgência e perigo ao filme. É meu jeito de extrair uma forma da ação."

RIVER OF FUNDAMENT
QUANDO dias 21, 22 e 23, às 14h30
ONDE CCBB, r. Álvares Penteado, 112, tel. (11) 3113-3651
QUANTO grátis


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