Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Elvira Vigna se tornará uma autora brasileira incontornável

Karime Xavier/Folhapress
A escritora Elvira Vigna, que morreu nesta segunda aos 69 anos
A escritora Elvira Vigna, que morreu nesta segunda aos 69 anos

Foi em 2006. Eu tinha acabado de completar 18 anos quando saí de uma livraria carregando um exemplar de "Deixei Ele Lá e Vim". Gostei do título e da capa, e isso me parecia o bastante. Também gostei de como soava o nome da autora -Elvira Vigna, jornalista, escritora e ilustradora nascida em 1947 no Rio de Janeiro.

Lembro do estranhamento imediato que senti. Era uma narrativa diferente de tudo aquilo a que eu estava habituada até então. Eu lia bons autores –alguns a duras penas–, mas havia algo distinto ali. Em certo sentido, e apesar das leituras que eu acumulava na época, é correto dizer que me faltavam algumas das ferramentas básicas para avaliar aquilo que eu tinha em mãos.

Mas é mais complicado do que isso. Onze anos depois, com uma bagagem um pouco maior, tendo lido e relido outros romances de Elvira Vigna, a tarefa de descrever sua prosa não se torna mais fácil. Ao contrário.

Elvira Vigna morreu nesta segunda (10), aos 69 anos. Diagnosticada com um carcinoma agressivo em 2012, a autora estava internada desde fevereiro deste ano no hospital Albert Einstein, em São Paulo. Vigna, que não quis que a doença viesse a público, não parou de produzir e de participar de eventos relacionados ao trabalho. Longe disso. De lá para cá, escreveu alguns de seus melhores livros.

Entender o que me fascinou e perturbou em "Deixei Ele lá e Vim" continua a ser, em grande medida, o mesmo que tentar apreender aquele caráter único e inquietante da obra de Elvira Vigna.

Por um lado, seus personagens perdidos e hesitantes, quase alienígenas em uma terra estranha –uma terra que parece ao mesmo tempo maravilhosa e hostil–, são responsáveis por essa atmosfera angustiante.

Mas assimilar o que Vigna imprime nesses personagens, e como o faz, e de que maneira suas circunvoluções nos deixam fascinados –isso é algo mais complexo.

Qualquer tentativa de classificar, relacionar ou demarcar a obra de Elvira Vigna parece fadada ao fracasso –e isso porque, mais do que uma autora que carrega uma influência óbvia, Vigna é uma autora destinada a influenciar de maneira direta as próximas gerações. Mais do que uma simples previsão baseada em achismos, o fato de que Vigna se tornará uma autora incontornável é uma obviedade para qualquer um que tenha lido seus livros.

É isso que costuma ocorrer com os pontos fora da curva, aqueles tão destacados e distintos que parecem ter surgido de lugar nenhum, prontos para arrastar consigo todos os que vêm e virão em seguida. E isso sabendo que não se pode, em hipótese alguma, imitar a voz de Elvira Vigna. Há nela algo que não se emula –justamente aquele algo inapreensível que tanto tem desnorteado a crítica.

Dentro da literatura brasileira, não há quem se iguale ou se aproxime dela. Os livros de Vigna sempre me fizeram pensar nos da escocesa Ali Smith –as questões de gênero, a ironia feroz, uma melancolia e uma desilusão não de todo destituídas de um assombro quase infantil pelo mundo, o experimentalismo sui generis–, mas mesmo esse paralelo confunde mais do que explica.

"Para mim foi a maior escritora brasileira do nosso tempo. Foi certamente a maior autora que editei. Acho que precisaremos de muito tempo para entender o legado dela para a nossa literatura, mas no momento só consigo sentir falta da minha amiga querida", diz André Conti, que foi editor dos dois últimos livros de Vigna na Companhia das Letras.

TRAJETÓRIA

"Sete Anos e Um Dia", primeiro romance da autora, foi publicado pela José Olympio, em 1988. O segundo, "O Assassinato de Bebê Martê", já na Companhia das Letras, demorou quase dez anos para surgir. De lá para cá, a produção seguiu em um bom ritmo, sempre com qualidade crescente.

Seu último romance,"Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas", é sua obra-prima. Há os mesmos elementos presentes nos outros livros, mas organizados de uma forma ainda mais brutal.

Talvez o que inquiete na prosa de Vigna, nos personagens de Vigna, é a consciência de que, por mais que tentemos, nunca os desvendaremos de todo. É essa a impressão radicalizada em "Palimpsesto". A protagonista esquiva e seu interlocutor banal, mas ainda assim único, dão o tom de uma prosa ao mesmo tempo móvel e estática, palpável e onírica.

Não acho que a leitura de outros críticos seja o mais importante na formação de alguém que se propõe a pensar a literatura. São os autores, sobretudo os excelentes autores, que fornecem à crítica aquilo de que ela necessita. Esse espanto, igual ou parecido ao que "Deixei ele lá e vim" provocou em mim, é necessário.

Mais do que a possibilidade de saber do que é feito e como se parece um bom livro, são esses autores que nos garantem a vontade de desvendar uma obra. São eles que nos permitem amar o que fazemos. Falo desses autores que ninguém iguala, as exceções, aqueles a partir dos quais, por muitos e muitos e muitos e muitos anos, leremos os outros tantos –autores como Elvira Vigna.

A escritora deixa o marido, Roberto, e os filhos Carolina e David.


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