Folha de S. Paulo


Masp exibe série clássica de Miguel Rio Branco sobre bordéis em Salvador

Elas desafiam a câmera. Nuas e duras, parecem feitas de pedra quente as prostitutas na porta dos bordéis. Seus corpos latejam, como se as entranhas estivessem a ponto de rasgar a pele curtida, retalhada de cicatrizes que ostentam como troféus.

Na década de 1970, Miguel Rio Branco voltou suas lentes para a zona do baixo meretrício do Pelourinho, coração de Salvador. Bares, inferninhos e cortiços arruinados fervem nessas imagens corrosivas, no limiar entre o tom documental e o voyeurismo descarado.

Essa série, das mais emblemáticas do artista e base da estratégia plástica que atravessa toda a sua obra, agora ressurge no subsolo do Masp, em paralelo à retrospectiva de Toulouse-Lautrec no primeiro andar do museu.

Divulgação
Fotografia de Miguel Rio Branco, da série 'Maciel', de 1979, agora no Masp
Fotografia de Miguel Rio Branco, da série 'Maciel', de 1979, agora no Masp

Não poderiam ser mais distintas a Paris fin-de-siècle do pós-impressionista e essa Salvador setentista, mas no centro de quase todas as composições desses autores está a mulher, entre esfinge, poço de tédio e força da natureza.

Em torno delas, Rio Branco retrata homens sempre de passagem, como que rondando essas âncoras femininas. Nas ruínas do casario colonial, de paredes destroçadas e matagais que avançam como carpetes para dentro de antes suntuosas salas de estar, um mundo em transe se desenha.

No caso, um reduto de trânsito incessante, de interior e exterior, público e privado, que se confundem. Ecos visuais do óleo quente nas frigideiras ou do sabão escorrendo pela sarjeta nas faxinas de fim de tarde, essas fotografias são um contraponto tropical e convulsivo à letargia aveludada de Toulouse-Lautrec.

Mas também existe calmaria, mesmo que instável, nas imagens de Rio Branco. "Não era o conflito que me interessava", diz o artista. "Era o momento de descanso delas. Nessa quase guerra, não mostro os momentos de maior tensão. É o sexo como decadência mesmo, num lugar caindo aos pedaços, com essas pessoas caindo aos pedaços."

Nesse sentido, os corpos violentados dessas mulheres, de feridas abertas, às vezes com sangue ainda fresco, ou cicatrizes brutas em peitos, nucas e lábios, espelham o abandono da cidade ao redor delas. É o declínio, ou descida ao inferno, entendido como destino comum a pessoas e construções -a ruína social e física como indissociáveis.

"É uma coisa fatalista, que existe muito no Brasil", diz Rio Branco. "E me revolta isso que não muda, um país rico dominado por poderes públicos que não dão porra nenhuma à população. É uma situação de sair dando tiro."

Mas esse bangue-bangue que inspira revolta também atrai o olhar barroco do artista. Sua visão à espreita do que seriam lampejos de encanto na banalidade nunca se desprende da sujeira, do magnetismo da dor e da violência, mesmo que esta sempre seja vista como fato consumado, exaltando a necrose e a cicatriz em detrimento do corte a ponta de faca.

Rio Branco orquestra em cores saturadas e contrastes granulosos um elogio à desordem e ao caos, numa celebração de uma liberdade que ele parece enxergar sempre às margens, fora do controle, da vigilância e da
assepsia da cidade dos ricos.

Existe amor no Pelourinho dos bordéis, ou ao menos uma intimidade calcada na empatia com seus retratados.

Em sua imersão nesse território de vidas no fio da navalha, Rio Branco, que pagava pela hora de programa pela oportunidade de fotografar essas mulheres, descortinou outro lado do submundo, um espaço onde a dor se reveste de empáfia e altivez em nome da sobrevivência.

"É uma vida filha da mãe. Você sente a tristeza delas, uma tristeza fodida, mas sem se mostrar fodida", diz o artista. "Isso é um grande blues."

MIGUEL RIO BRANCO
QUANDO todos os dias, das 10h às 18h; qui., até 20h; até 1º/10
ONDE Masp, av. Paulista, 1.578, tel. (11) 3149-5959
QUANTO R$ 30, grátis às terças


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