Folha de S. Paulo


Em novo disco, Jay-Z vence demônios, mas perde seu humor malicioso

Doug Mills - 4.nov.2016/The New York Times
Rapper Jay-Z em show em Ohio, EUA
Rapper Jay-Z em show em Ohio, EUA

Quando começava entre os rappers o hábito de criar mitos sobre eles mesmos, Jay-Z já era um dos mais dedicados estudiosos. Ele criou um dos personagens mais fascinantes do pop: o malandro de esquina tornado multimilionário, liso e despreocupado.

Se você está no topo, ou chegando lá, essa é uma abordagem irrebatível. Mas, quando já está reinando há algum tempo, a postura pode parecer despótica, egoísta, falsa.

Como estadista do rap, Jay-Z seria perdoado se desistisse da batalha. Só uma catarse emocional e espiritual ou uma intimidade extrema e enxuta tornariam viável um retorno.

No confiantemente vulnerável "4:44", seu 13º álbum de estúdio e primeiro trabalho em quatro anos, Jay-Z escolheu os dois caminhos.

"4:44" é uma confissão longa, férvida e contrita; um relaxamento de músculos que estavam tensos por décadas; o retorno de um mestre que reescreveu as regras do gênero; um golpe de marketing para estimular dois de seus negócios, o serviço de streaming Tidal e a operadora de telefonia Sprint. (Por enquanto, para ouvir o álbum é preciso ter um desses serviços.)

Também se trata do primeiro disco de Jay-Z em uma década que não finge estar competindo no presente. Ele traz o som de um esteta de 47 anos em seu ritmo, lembrando a ele mesmo da emotividade que aquela empáfia encobria.

"Eu fico aquém daquilo que digo que sou", diz o rapper na faixa-título, um pedido de desculpas à mulher, Beyoncé, por infidelidades que a levaram a expô-lo. O disco começa com "Kill Jay Z", uma longa bronca do rapper nele mesmo.

Sim, ele traiu Beyoncé; sim, ele tentou fazer terapia ("Smile"); sim, ele esfaqueou o executivo Lance Rivera em 1999 ("Kill Jay Z"); sim, o abuso era frequente na sua família ("Legacy"); sim, a mãe dele é lésbica e viveu no armário por décadas ("Smile"); sim, ele está de saco cheio das traquinagens dispersas de Kanye West ("Kill Jay Z" e outras).

Bem, isso presumindo que tudo o que ele está cantando seja verdade, e não o segundo episódio de uma novela que envolverá múltiplos álbuns.

Jay-Z já foi franco a esse ponto no passado, mas nunca se expôs tanto assim.

De alguma maneira, "4:44" é o par de "Lemonade", de Beyoncé. Na faixa-título, Jay-Z é autocrítico de maneira muito vívida: "Vi a inocência deixar seus olhos/ E ainda lamento que ela tenha morrido", ele diz à mulher. Os dois discos também compartilham de uma ênfase quanto à autossuficiência negra.

"4:44" foi produzido em grande parte por No I.D., que criou uma paleta musical calcada em samples, bruta e ligeiramente gordurosa. Ele coloca tempos arrastados, esticados, sujos. Há ainda uma pátina nos vocais. Nada reluz –nem os beats nem os sentimentos. É quase um álbum acústico, um prato cru e platônico combinando rapper, produtor, samples e beats.

A ornamentação há muito tempo serve bem a Jay-Z, e por isso a falta de glamour do novo trabalho é um choque. Parte do atrativo de ouvi-lo era a maneira lustrosa pela qual pintava o inatingível. Que debaixo disso haja um homem repleto de arrependimentos é algo um tanto óbvio e um pouco decepcionante.

As qualidades que fizeram de Jay-Z um dos grandes sábios do rap eram seu humor malicioso e a maneira como mesclava seu estilo à produção. O Jay Z de "4:44" não é mais assim. Ele evoluiu de deslumbrantes provocações para ruminações às vezes espertas e às vezes frouxas.

Jay-Z defende o saber envelhecer artisticamente, enxugando o trabalho até os princípios básicos. Em termos de álbuns tardios, "4:44" não é Marvin Gaye, Frank Sinatra ou Johnny Cash, mas está a caminho disso. Verdades desconfortáveis confrontadas, demônios vencidos, um processo que passou por um refino completo –mesmo que tudo esteja derretendo, ainda é possível ser frio como o gelo.

4:44

ARTISTA Jay-Z

GRAVADORA Roc Nation

ONDE Tidal (tidal.com)


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