Folha de S. Paulo


Editora pede mudança em romance sobre Israel por omitir lado político

Dan Balilty - 20.abr.2017/The New York Times
Ambiente de um kibutz, comunidades coletivas em que a propriedade e a produção pertenceriam a todos, em Israel
Ambiente de um kibutz, em que a propriedade e a produção pertenceriam a todos, em Israel

"Era o sonho da vida inteira. Também o motivo do pedido de demissão feito porque o kibutz era um lugar feliz, igualzinho ao filme 'A Praia', só que sem a violência da parte final. Lá, os jovens eram bronzeados, os namoros eram transcontinentais."

O trecho da página 22 de "O Último Kibutz" (ed. Simonsen), que será lançado em julho, dá o tom do romance da escritora e jornalista mineira Sabrina Abreu, 36. De um ponto de vista idílico, conta a história da brasileira Sofia, que decide trabalhar como voluntária na colheita de maçãs de um kibutz (fazenda coletiva) em Israel e deixa para trás as mazelas da vida profissional em São Paulo em busca de novos amores, amigos e experiências.

Mas a publicação do romance esbarrou num obstáculo que quase a inviabilizou. Um parecer encomendado, em 2015, por outra editora, a nVersos, assinalou que o volume não era "crítico em respeito à atuação de Israel em relação à Palestina" e "defender Israel" ao "enaltecer" o modo de vida do kibutz.

Diz o parecer: "Uma ressalva seria o tratamento da questão política no livro. À primeira vista, a obra não se pretende política, e portanto, não defende o sionismo nem Israel. Para quem acompanha os conflitos no local, porém, a ausência de comentários críticos a respeito da atuação de Israel em relação à Palestina salta à vista. Ao enaltecer um modo de vida em extinção –o coletivismo dos kibutz– acaba-se por defender Israel".

Trechos do documento, que é anônimo, foram enviados à autora por e-mail, acompanhados de uma sugestão da própria nVersos. Ela deveria conversar com um especialista em Oriente Médio para orientá-la "sobre como conduzir esse aspecto da obra". Em outro e-mail, a escritora foi indagada se "estaria disposta a fazer alterações".

KIBUTZ

Os kibutzim são vilarejos agrícolas criados a partir de 1909 (40 anos antes do Estado de Israel) como comunidades em que a propriedade e a produção pertenceriam a todos. A maioria se identifica com a esquerda de Israel.

Seus membros votam em partidos que defendem a criação de um Estado palestino e a retirada dos assentamentos israelenses na Cisjordânia e Jerusalém Oriental, terras pleiteadas pelos palestinos. Não fica claro se a parecerista confundiu os termos "kibutz" e "assentamento".

Sabrina Abreu morou quase durante um ano em Israel. "Sugeriram que minha abordagem seria ingênua porque não trata da questão palestina, algo que não influencia no cotidiano das pessoas por lá como se pensa."

Sabrina já lançou quatro livros de não ficção, um deles pela própria nVersos ("A Voz do Alemão"). Ela chegou a contatar Samuel Feldberg, professor de relações internacionais da USP, para pedir orientação. Mas ouviu dele a sugestão de não mudar nada –só de editora.

"O parecer é parcial em sua visão política e não tenho dúvida de que estamos falando de uma questão de liberdade de expressão, de censura. Podem recusar textos, mas pedir que um romance seja modificado para contemplar uma visão política é outra dimensão", diz Samuel Feldberg.

Sabrina Abreu buscou então a editora Simonsen, que não pediu mudanças. "Não compactuo com a mania contemporânea de submeter a estética a critérios políticos", diz Rodrigo Simonsen, dono da editora.

"Trata-se mesmo de um vício dos editores no país. O que importa é a capacidade de imaginação e de articulação linguística e não apresentar um painel isento, com cada personagem tendo que ter uma posição política para representar todos os aspectos de uma sociedade."

Procurado pela Folha, Julio César Batista, diretor editorial e de arte da nVersos, afirmou que a autora aceitou fazer as mudanças pedidas por ele no livro: "Sabrina Abreu nos escreveu que concordou muito com o parecer e que estava disposta a fazer as inclusões sugeridas".

Sarah Edkins, da PEN America (organização que promove a liberdade de expressão), defende tanto o direito à liberdade de expressão quanto o de os editores rejeitarem o que não quiserem publicar. "Autores e editores sempre fizeram considerações individuais sobre a recepção das mensagens e a potencial repercussão social das obras."

Em "Livros Contra a Ditadura: Editoras de Oposição no Brasil, 1974-1984", o historiador Flamarion Maués conta como livros, incluindo romances ficcionais, tiveram um papel político naquele período. Mas muitos editores se questionam quanto a esse papel numa democracia.

"A luta mais certeira, da qual nós editores não podemos escapar, é a da liberdade de expressão, associada eventualmente à defesa da qualidade literária. Nossa causa maior e mais defensável é a de abrir nossas casas para todos os tipos de autores e promover um debate o mais amplo possível", escreveu o editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, no Blog da Companhia, em 2016.


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