Folha de S. Paulo


Mulheres raras e medo inspiram contos da argentina Mariana Enriquez

Mariana Enriquez, 44, foi uma criança amedrontada. Uma vez, aos oito, teve tanto medo de uma mancha causada pela umidade que surgiu no teto de seu quarto, que não conseguia deixar de imaginar que era algo que a observava. A agonia foi tão grande que foi dormir com os pais.

Por outro lado, o medo sempre a atraiu. Além de gostar de passear em cemitérios e de andar vestida de preto, os títulos de literatura de que mais gostou quando era adolescente eram de horror, fantásticos ou o clássico gênero noir, que tem uma longa trajetória na Argentina.

Awakening/Getty Images
Mariana Enriquez em festival literário em Veneza
Mariana Enriquez em festival literário em Veneza

"Sempre fui uma mulher rara, e é por isso que as mulheres nos meus livros também são assim, raras, diferentes", conta, em entrevista à Folha, em uma livraria de Buenos Aires, enquanto define as protagonistas do sexo feminino de seus contos e romances.

A coletânea que sai agora no Brasil, "As Coisas que Perdemos no Fogo", resume essas características. "Misturei influências, de Stephen King a Emily Brontë, com elementos do cotidiano argentino e da realidade social do país. O medo e o suspense podem vir de elementos fantásticos e surreais, mas também da própria realidade. Para mim, a realidade oferece os melhores recursos para contos sombrios, ainda que não despreze o fantástico."

É por isso que surgem, "sempre um pouco desfigurados", os subúrbios de Buenos Aires, o centro da cidade, lugares fora do eixo das grandes urbanizações. Ali, segundo ela, também abundam histórias de fantasmas. "Fico obcecada perseguindo-as."

E acrescenta: "Não digo que escrevo de forma autobiográfica, mas sim que, sempre que escolho um universo para ambientar uma história, eu já estive ali, sei quem vive, como se fala, um pouco como se pensa naquele lugar. Não que entenda tudo, afinal, tenho muito poucas certezas na vida", afirma, rindo.

NARRADORA FICCIONAL

O conto que abre o livro, por exemplo, descreve uns dias na vida de uma mulher de classe média alta que vai viver no centro degradado da capital. "Sei dos personagens da região porque a sede do jornal em que trabalho é ali, mas não é um conto autobiográfico, eu não sou a narradora, ela é ficcional", avisa. Enriquez é editora de cultura do jornal "Página12".

Suas tramas também já visitaram o abafado norte do país, perto das fronteiras com o Paraguai e o Brasil. "Sinto atração, parte da minha família é de lá, e penso que gosto de investigar essa região porque se trata de uma Argentina calada, que inspira muitos medos, mas que me ensina muito também."

Com resenhas positivas em publicações importantes, como o jornal "The New York Times" e a revista "New Yorker", e passagens por vários festivais internacionais, Enriquez diz que se incomoda com o pouco conhecimento que se tem da literatura latino-americana no mundo anglo-saxão. "As referências são muito restritas, e eu me vejo ensinando os jornalistas, que supostamente são pessoas lidas, mas cujas referências não vão muito além de Jorge Luis Borges [1899-1986] e do realismo mágico, que é um rótulo que combato muito."

Outra referência comentada no exterior é a da ditadura militar (1976-1983). "Alguns podem achar que minha geração deixou de falar do assunto. Mas não se trata disso. O que mudou foi que hoje há a necessidade de refletir sobre a violência política desde outros gêneros, mas não com menos seriedade.

Nós, que crescemos durante a ditadura, somos hoje adultos e podemos ter um olhar diferente, de um ângulo mais sutil, e também mais identificado com o modo como recebemos a informação sobre o que ocorria."

As Coisas Que Perdemos No Fogo
Mariana Enriquez
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Entre a contista e a romancista, Enriquez não se decide. "Escrever contos é mais fácil, e creio que saem melhores. Nesse sentido, eu me sinto muito como uma escritora argentina típica, porque nossa relação com a tradição do conto é muito forte. Mas com os romances me divirto mais e é um jogo que dura mais tempo."

Nos últimos dias, Enriquez vem divulgando, na Argentina, seu mais recente romance, "Éste Es el Mar", cuja trama está relacionada ao mundo do rock. "Mas não o de hoje, o da nossa geração, é uma novela vintage."


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