Folha de S. Paulo


Análise

'Fábula' é o melhor do Brasil no festival Cinema Ritrovato

Reprodução
Cena de ‘Fábula’ (1965), gravado no Rio pelo sueco Arne Sucksdorff e agora restaurado
Cena de ‘Fábula’ (1965), gravado no Rio pelo sueco Arne Sucksdorff e agora restaurado

Para um país no quarto mundo da preservação de seus tesouros, o Cinema Ritrovato de 2017 não tem sido nada mau com o Brasil. O festival dedica especial atenção, neste ano, a Jean Vigo, e na sessão da Piazza Majore o filme principal foi "O Atalante".

Não que Vigo tenha algo a ver com o Brasil, exceto que seu primeiro grande estudioso foi Paulo Emílio Salles Gomes, que lhe dedicou uma belíssima biografia. Se naquele momento o trabalho de Paulo Emílio revelou Vigo na França, hoje parece o momento de sua redescoberta europeia, graças a novos restauros.

Diretor do Ritrovato, Gianluca Farinelli lembrou do "primeiro grande estudioso" de Vigo (palavras dele) no dia seguinte, ao apresentar o "Festejo Muito Pessoal", de Carlos Adriano (2016), inventário em poucos minutos do que se conseguiu preservar, às vezes milagrosamente bem ("Limite", 1931, de Mário Peixoto), às vezes mal e porcamente ("O Tesouro Perdido", 1927), de Humberto Mauro. Não entraram os incontáveis filmes perdidos, claro.

No entanto, a presença brasileira mais ostensiva ainda estava por vir. O filme foi apresentado com o nome de "Mitt Hem Är Copacabana". Na versão brasileira se chamava "Fábula" (1965). O titulo sueco significa "meu lar é Copacabana". O restauro é sueco (não norueguês), assim como o diretor, Arne Sucksdorff.

No entanto, o Brasil está envolvido até o pescoço neste filme que o autor baseou em entrevistas com meninos de rua de Copacabana, no período em que morou no país.

Sim, Sucksdorff não apenas morou no Brasil como foi responsável pelo célebre seminário em que ensinou a fazer cinema um grupo de jovens que, tempos depois, seriam conhecidos como figuras centrais do cinema novo brasileiro.

Sua "Fábula" foi corroteirizada por Flávio Migliaccio e João Bethencourt e, entre os membros da equipe, consta o futuro diretor de fotografia e câmera Dib Lutfi, aqui como assistente de câmera.

O filme é um achado. Herdeiro vivo e representativo do neorrealismo, "Fábula" narra a vida de um grupo de crianças de rua evadidas do recolhimento de Caxambu (nunca ouvi falar, devia ser uma Febem de seu tempo).

Como viver? Como sobreviver sem pai e sem mãe, sem casa, sem idade para sequer conseguir um emprego?

Sucksdorff não amacia em relação aos males da nação que adotou: a miséria, a vizinhança da marginalidade, a fome, as brigas e a malandragem estão inteiras lá.

Mas basta uma curta cena para sabermos o que esse olhar estrangeiro é capaz de captar. Num momento, Jorginho, o menino negro, recolhe na praia uma bola e a devolve à proprietária, uma menina da sua idade. Pede a ela que lhe jogue novamente a bola. Ela olha desconfiada e recusa. Temos ali, em menos de 20 segundos, um tratado do racismo brasileiro.

Este está longe de ser o único momento memorável do filme, que pode ser comparado de certo modo ao nosso "Cinco Vezes Favela". A enorme diferença é que Sucksdorff não estava preocupado em constituir uma imagem do Brasil. Simplesmente filmou o que viu.

Ao apresentar essa linda "Fábula", Jon Wengstrom, do Svenska Filminstitutet, responsável pelo restauro do filme, nem se deu ao trabalho de mencionar a passagem de Sucksdorff pelo Brasil (que foi de mais de 30 anos, aliás) nem sua importância para o cinema brasileiro.

Nada. Como reclamar? Afinal, o restauro se deve à Suécia (não Dinamarca). A depender do Brasil é difícil imaginar o destino dessa poética visão de nossa miséria, que ao mesmo tempo nos traz de volta um Rio de Janeiro onde a convivência era já um tanto caótica, mas, sobretudo, aprazível.


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