Folha de S. Paulo


Deborah Colker suja bailarinos de lama em versão de 'O Cão sem Plumas'

Deborah Colker diz que foi com João Cabral de Melo Neto que apreendeu o sentido da palavra "espesso". Mais especificamente no poema do pernambucano "O Cão sem Plumas" –e seus versos "Como é muito mais espesso/ o sangue de um homem/ do que o sonho de um homem".

E foi na viscosidade dos mangues retratados na obra do poeta que a coreógrafa se inspirou para seu novo trabalho: "Cão sem Plumas" é sua versão do poema cabralino. Nela, Deborah une dança (com os bailarinos lambuzados de lama) e vídeo.

O espetáculo estreou no Teatro Guararapes, em Olinda, no último dia 3. Nesta sexta (30), terá sessão em Porto Alegre. A temporada depois passa pelo Festival de Dança de Joinville, pelo Rio e aporta em São Paulo no fim de agosto.

Primeiro poema de fôlego de João Cabral, "O Cão sem Plumas" foi publicado em 1950, quando o poeta, aos 30, trabalhava como diplomata em Barcelona. Distante de seu país, retratou em versos a miséria de sua terra natal, o homem mastigado que se incorpora à lama do mangue.

"Para mim, é um espetáculo sobre aquilo que é inadmissível. É um grito silencioso e delicado", diz a coreógrafa, que faz aqui a sua terceira adaptação literária –antes fez "Tatyana" (2011), versão de "Evguêni Oniéguin", de Alexander Púchkin, e "Belle" (2014), baseado em "A Bela da Tarde", de Joseph Kessel.

Deborah iniciou o processo de pesquisa há três anos. Via uma força na geografia do poema (as margens do rio Capibaribe) e queria levá-la para a cena. Convidou o cineasta Cláudio Assis para que produzissem imagens da região.

Em novembro passado, a equipe percorreu por três semanas cinco cidades que margeiam o rio pernambucano, dando oficinas de dança às comunidades e conhecendo elementos da cultura local.

Ali, gravaram as cenas que acompanham cerca de 70% do espetáculo. Em preto e branco, numa fotografia seca e contrastante que lembra as imagens de Sebastião Salgado, o filme é projetado ao fundo do palco. Mostra performances dos bailarinos pelos mangues do rio, as paisagens amplas e craqueladas.

"É um espetáculo em movimento, intermitente, como o poema", afirma Assis. "A gente pode ir mudando a ordem das imagens [na temporada]."

À frente da tela, os bailarinos lembram caranguejos: o tronco curvado, os braços tortos. Eles se movimentam em conjunto, quase formando um corpo só. À medida que dançam, a lama que cobre seus corpos, em parte já seca, sobe em pó e suja o palco.

A coreografia traz influências regionalistas (como o coco, com fortes batidas de pés), mas também estrangeiras, caso do africano kuduro. São movimentos mais concisos, distantes dos trabalhos acrobáticos pelos quais Deborah ficou conhecida, em espetáculos como "Mix" (1995) e "Nó" (2005). "A gente vai do clássico ao popular. Uso sapatilha de ponta e ainda vou para a lama", diz ela.

Também nem só de regionalismos é feita a trilha sonora de Jorge dü Peixe, vocalista do Nação Zumbi, com participação do músico Lirinha.

Dü Peixe criou canções melódicas para os versos, ora cantados (pelo próprio ou por Lirinha), ora declamados (em gravações que acompanham a música). Há um pouco do manguebeat e do eletrônico característicos do músico, mas também traços de frevo e valsa. "Mas, claro, tudo salpicado de lama", conta ele.

O processo do espetáculo ainda vai dar origem a um documentário, que deve sair entre setembro e outubro.

O longa acompanhará a residência nas comunidades ribeirinhas, a estreia em Pernambuco no início deste mês e uma apresentação prévia feita no Marco Zero de Recife no fim do ano passado, com o grupo dançando sobre uma uma balsa alocada no encontro do Capibaribe com o mar.

A jornalista MARIA LUÍSA BARSANELLI viajou a convite da produção do espetáculo.

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cão sem plumas

QUANDO

  • 30/6 e 1º/7, no Bourbon Country (Porto Alegre)
  • 19/7, no Festival de Dança de Joinville
  • 27 a 30/7, no Theatro Municipal do Rio
  • 5 a 6/8, no Sesc Palladium (BH)
  • 9 e 10/8, no Teatro Goiânia
  • 12/8, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães (Brasília)
  • 25/8 a 3/9, no teatro Alfa (SP)

PROGRAMAÇÃO E INGRESSOS ciadeborahcolker.com.br/agenda


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