Folha de S. Paulo


Obras de Toulouse-Lautrec no Masp reveem tédio e melancolia dos bordéis

Elas parecem fitar um abismo. Os olhos atrás da maquiagem borrada vão longe, em contraste com o corpo pesado, que se desmancha no sofá de veludo vermelho do bordel. Um tédio viscoso ronda a cena -a fúria do salão afogada nas horas de espera por encontros sexuais mecânicos.

As cortesãs de "O Divã", quadro de Henri de Toulouse-Lautrec que abre a retrospectiva do artista agora no Masp, são massas instáveis de cor, esvaziadas de glamour e desejo. São mulheres anestesiadas pela vida e flagradas no avesso da luxúria, no vazio de suas noites sem brilho.

Famoso pelos cartazes dos espetáculos de uma Paris fervilhante na virada para o século 20, Toulouse-Lautrec, morto aos 36, em 1901, também foi o cronista do enfado e da violência da noite, dos cabarés encardidos e de estados de embriaguez irreversíveis.

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Moulin de la Galette', tela de 1889, de Henri de Toulouse-Lautrec, agora em retrospectiva no Masp
'Moulin de la Galette', tela de 1889, de Henri de Toulouse-Lautrec, agora em retrospectiva no Masp

Esse caminho sem volta noite adentro, âncora de sua obra plástica, também refletiu seus vícios mais que reais.

Toulouse-Lautrec era um aristocrata que abandonou a vida bela -regrada e controlada- dos nobres para flanar pela marginalidade parisiense. Deformado, com as pernas atrofiadas depois de acidentes na infância, virou um alcoólatra com uma obsessão pelas dançarinas de cancã, as prostitutas, as atrizes e os senhores indiscretos que frequentavam suas alcovas.

"Ele enfrenta toda a complexidade do comércio sexual", diz Luciano Migliaccio, que organiza a mostra. "Retrata as relações duras que se estabelecem nos bordéis."

O bordel, no caso, vira um microcosmo de tensões sexuais e de classe. Também é o ponto de partida de uma série de mostras sobre arte e sexualidade que o Masp planeja na sequência desta primeira exposição blockbuster desde a troca de comando no museu há três anos -são 75 obras, vindas da Tate, de Londres, do Museu d'Orsay, de Paris, e da National Gallery, de Washington, entre outros.

Toulouse-Lautrec talvez não tenha o apelo popular de um Picasso ou Van Gogh, mas sua absoluta franqueza e frescor no registro das relações desiguais entre quatro paredes tornam sua obra incontornável nas reflexões sobre como o sexo -pago ou não- virou um dos mais recorrentes assuntos da modernidade.

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A Grande Maria', tela de 1886, de Henri de Toulouse-Lautrec, agora em retrospectiva do artista no Masp
'A Grande Maria', tela de 1886, de Henri de Toulouse-Lautrec, agora em retrospectiva do artista no Masp

Revisto em todos os seus matizes, de sua análise magnética e psíquica das cortesãs ao misto de fascínio e reverência com que trata os homens, o artista foi muito além da crônica de costumes, de almoços na relva e entardeceres fulgurantes, que vigorava no impressionismo até o momento.

Mais do que sexo, Toulouse-Lautrec plasmou em chave imediatista, de pinceladas rápidas e ralas, um mundo solitário e imprevisível, marcado por uma vontade de intimidade que nunca se concretiza.

Ou quase nunca. As prostitutas de seus quadros, sempre vistas longe dos homens, buscam entre elas um amor ausente -das amigas que se abraçam no sofá de veludo vermelho às mulheres fazendo sexo oral em "Rolande".

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A Roda', tela de 1893, de Henri de Toulouse-Lautrec, agora em retrospectiva do artista no Masp
'A Roda', tela de 1893, de Henri de Toulouse-Lautrec, agora em retrospectiva do artista no Masp

Mesmo fora dos bordéis, suas mulheres surgem absortas num mundo próprio, à parte, como que inatingíveis.

Sua mãe, retratada em "A Condessa Adèle de Toulouse-Lautrec", tela de 1880, é uma delas. Quase aprisionada pelas massas de cor esverdeada que compõem o jardim atrás dela, ela parece estar ao mesmo tempo em primeiro e segundo plano, uma presença ambígua, fantasmagórica.

Dos mais belos quadros da mostra, antes da radicalização mais feroz de seus traços que vão ficando cada vez mais soltos e fugidios ao longo da vida, "A Ruiva numa Camisa Branca", de 1889, é outro desses trabalhos que lembram a confissão de um desejo reprimido, a vontade de chegar perto de uma mulher que nada quer, o sol vindo de trás e transformando em fornalha sua cabeleira avermelhada.

Enquanto suas mulheres se mostram isoladas, os homens de Toulouse-Lautrec se revelam machos, adultos, brancos no comando. Ele retrata senhores bem-vestidos, cartolas e luvas a postos, sempre no momento em que entram ou saem de uma sala, a bengala em riste, aludindo a certa proeza sexual.

"Os homens estão sempre no limiar entre dois mundos", diz Migliaccio. "São máscaras, figuras de autoridade que estão entre a casa e a noite."

MUNDO CINDIDO
Mas ambos os mundos, masculino e feminino, têm a mesma materialidade difusa na obra de Toulouse-Lautrec. Os enquadramentos fotográficos, de cortes espontâneos que às vezes parecem aleatórios, lembram a ousadia das composições de Edgar Degas e suas bailarinas, mas vão além da imprecisão do obturador ao exaltar um aspecto de inacabado e imperfeito.

Suas cores nem sempre se prendem aos volumes traçados em preto, os planos às vezes se achatam numa massa indistinta e o movimento domina tudo, como em "A Roda", de 1893, em que a saia de uma bailarina é uma enorme espiral no centro da tela, dando a sensação de visão turvada pelo murmúrio do salão, pelo tilintar das taças e pelo alvoroço do palco.

Toulouse-Lautrec retratou, no caso, um mundo cindido entre aparências exuberantes e graus profundos de melancolia. Suas noites vazias, de corações partidos e bebedeiras homéricas, parecem se esconder debaixo das saias rodadas das cortesãs.

HENRI DE TOULOUSE-LAUTREC
QUANDO abre na quinta (29), às 20h; de ter. a dom., das 10h às 18h; qui., até 20h; até 1º/10
ONDE Masp, av. Paulista, 1.578, tel. (11) 3149-5959
QUANTO R$ 30, grátis às terças


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