Folha de S. Paulo


Crítica

Biografia de Lima Barreto se ressente de anacronismos

LIMA BARRETO - TRISTE VISIONÁRIO (bom)
QUANTO: R$ 69,90 (656 págs.)
AUTORA: Lilia Moritz Schwarcz
EDITORA: Companhia das Letras

Já se falou de uma linha de continuidade entre o mulato Machado de Assis e o mulato Lima Barreto. Mas um foi também o avesso do outro.

Passadas as turbulências infantojuvenis, Machado levou vida sóbria, confortável e segura. Lima, depois de uma infância tranquila, foi pobre, anarquista, amalucado, alcoólatra, caindo de bêbado pelas ruas do Rio.

Machado foi romancista da classe dirigente e de seus subúrbios ricos. Lima abria o foco sobre o conjunto do mundo social carioca, centrando a luz na dor dos mais humildes. E com um conhecimento de arquitetura e urbanismo superior ao do meio literário brasileiro.

Machado sempre posou de branco, silenciando sua situação racial. Lima encarou o racismo e falava de seus antepassados escravos. "Nasci sem dinheiro, mulato e livre", escreveu.

Em seu "Diário Íntimo", anotou: "Escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua influência na nacionalidade" –o que levou Gilberto Freyre a dizer que tinha realizado, à sua maneira, o sonho textual do romancista.

Esta é a personagem que Lilia Moritz Schwarcz biografou em "Lima Barreto: Triste Visionário". Um ato de coragem, depois que Assis Barbosa compôs "A Vida de Lima Barreto".

E a obra é admirável, feita com minúcia e rigor. Com pleno conhecimento da vida do autor e da vida social brasileira no período. É sua grande virtude contextual: Lima "in situ" –e em situação.

Mas o livro também se ressente de anacronismos e idealizações. E toma como definitivos o politicamente correto e o jargão acadêmico-racialista hoje em voga.

Reprodução
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), escritor brasileiro nascido no Rio de Janeiro. Foto: Reproducao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), escritor brasileiro nascido no Rio de Janeiro.

Isto é: "termos nativos" da sociedade norte-americana, produtos do horror puritano às misturas e mestiçagens, que os movimentos negros e o "establishment" universitário importaram para cá.

Enfim, coisas que Lima classificaria talvez como "bovarismos". E com ele concordaria Stella de Oxóssi, Odé Kayodé, ialorixá-mor do Brasil, definindo-se não como negra, mas como marrom.

Na capa, quase um hiperrealismo emprenhado de expressionismo, estampa-se a ânsia de tratá-lo não feito "mulato livre", mas "afrodescendente".

Lima –cabeça mais sociológica do que antropológica– não se voltou para culturas de origem negroafricana (a "alma nagô" só vai ingressar em nossa literatura com "O Feiticeiro" de Xavier Marques). Sua preocupação é o mulato carioca em busca de integração e ascensão sociais.

E terminamos o livro com uma frustração. Lilia fala que Lima cultivou uma "forma literária afrodescendente". Mas não diz o que isto significa.

Lima Barreto - Triste Visionário
Lilia M. Schwarcz
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Pelo contrário. Passa anos-luz distante do campo das estruturas textuais. Como se a coisa pudesse se resolver em metafísica somática e não na materialidade da escrita.

Mas, no fim das contas, merece nosso aplauso. Para quem curte literatura brasileira, é leitura quase obrigatória.

ANTONIO RISÉRIO é antropólogo, ensaísta e romancista, autor de "Oriki Orixá" (Perspectiva) e "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros" (ed. 34).


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