DAMIEN HIRST (regular)
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Damien Hirst entrou para a história da arte pela porta do choque. Seus tubarões em tanques de formol, bezerros e vacas fatiados em vitrines assépticas e sua caveira cravejada de diamantes se firmaram como as notas mais agudas de uma sinfonia dissonante.
Mas o que o britânico mostra agora no Palazzo Grassi e na Punta della Dogana, os dois museus do magnata François Pinault em Veneza, ultrapassa todos os limites.
No átrio monumental do primeiro endereço, Hirst plantou a estátua de um homem de três andares de altura -seria uma escultura milenar resgatada do fundo do mar, destroçada e coberta de cracas.
Andrea Merola /Ansa | ||
'Hydra and Kali', escultura de Damien Hirst, na Punta della Dogana, em Veneza |
Sua ruína fake reduz espectadores a anões embasbacados a orbitar algo que poderia ter saído de um desfile de escola de samba. Mas, no lugar de isopor e compensado, o artista usou toneladas de resina, bronze, ouro, cobre e outros materiais caros para moldar uma fantasia distópica.
Na sequência, há esculturas enormes de monstros marinhos, bustos de faraós e também pequenas relíquias douradas, forjadas para lembrar joias descobertas ao acaso.
O pano de fundo -fictício- por trás da mostra é a história de um naufrágio. Um colecionador da Antiguidade teria tentado levar seus tesouros acumulados em vida a um templo ainda mais suntuoso, mas seu barco afundou no meio do caminho. Séculos depois, Hirst viria a encontrar o que sobrou de tudo aquilo.
Miguel Medina/AFP | ||
'Demon with Bowl', escultura de Damien Hirst, no Palazzo Grassi, em Veneza |
Uma leitura rasa enxergaria na alegoria de Hirst um ataque a seu mecenas, o francês que também comprou dois palácios na cidade dos canais para ostentar os seus tesouros da arte contemporânea.
Hirst não é nenhum poço profundo, então faz sentido.
Mas além de mais um ataque aos mecanismos do mercado, indústria essa que o transformou no artista plástico mais rico do planeta, ele parece plasmar em Veneza um lamento por certa monumentalidade perdida na arte.
Suas obras exaltam a própria nobreza, seguindo a lógica de que mais é mais. Hirst acredita no espetáculo e entrega aquilo que o público ávido por selfies sempre sonhou -um espaço fantástico, inimaginável, escalafobético. Tudo impressiona, tudo brilha, tudo arranca suspiros.
Essa superficialidade escancarada, no entanto, atinge o efeito inverso. Revela o desapego do artista em relação aos cânones da arte cool, do modernismo, do minimalismo, de tudo que o establishment enquadra como monumento mirando justo seu caráter antimonumental.
Mesmo kitsch e despropositadas, feias mesmo, essas obras de Hirst, muitas já vendidas por milhões de dólares, abrem uma brecha no hermético campo da arte contemporânea, como o filme de super-herói que desanuvia um mundo de ideias que se leva a sério demais.
Elas parecem afirmar que, com uma enorme fortuna no bolso, é possível esquecer o decoro e reivindicar um respiro na contramão da placidez dos cubos brancos.