Folha de S. Paulo


Callado ganha peças radiofônicas e crônicas no seu centenário

Arquivo de Ana Arruda Callado
O escritor e jornalista Antonio Callado em 1942, quando trabalhava na BBC, em Londres
O escritor e jornalista Antonio Callado em 1942, quando trabalhava na BBC, em Londres

No ano de seu centenário, Antonio Callado (1917-1997) deve ganhar um novo livro, com textos inéditos que ele mesmo, nos últimos anos de vida, não devia acreditar que ainda existiam.

O pesquisador Daniel Mandur Thomaz, 34, professor de Oxford, encontrou no arquivo da BBC, onde o escritor trabalhou durante a Segunda Guerra Mundial, 19 peças radiofônicas escritas pelo autor de "Quarup".

Elas foram transmitidas pelo Serviço Brasileiro da emissora britânica, mas desde então estavam no arquivo morto da empresa.

Como diz o estudioso, em um mundo em que todo o passado parece já estar acessível na internet, é incrível que tantos textos de um dos grandes nomes da literatura brasileira da segunda metade do século 20 pudessem ter restado esquecidos até hoje.

Thomaz encontrou os textos datilografados. Os arquivos sonoros, nas quais Callado inclusive representava alguns personagens, seguem perdidos. É provável que nem fragmentos existam mais.

Nos anos 1940, os programas de rádio eram transmitidos principalmente ao vivo; por segurança, sua íntegra era registrada em discos de cera regraváveis, que guardavam a memória por algum tempo. Em seguida eram reciclados, usados para registrar outras gravações. Por isso são tão raros os áudios de momentos históricos ou de programas de rádio daquele período, mesmo os mais populares.

No caso das peças, só restaram as páginas que foram metodicamente arquivadas pela BBC. As pastas com o material, em seguida, foram lacradas, até para evitar sua degradação por bactérias e fungos. Assim ficaram desde os anos 1940, até o pesquisador brasileiro encanar de procurar os textos que Callado produziu para a empresa inglesa entre 1941 e 1947.

Quando os técnicos de sanitização da BBC abriram as pastas para ele em 13 de maio de 2014, após cinco meses de espera, Daniel Thomaz encontrou também uma série de crônicas da vida londrina no período, que ele pretende organizar em seguida, em outro volume.

Callado morreu 20 anos atrás quando escrevia para a página 2 da Folha uma coluna de textos curtos de comentários de atualidade. Tinha câncer. Dois dias antes de morrer completou 80 anos, que achava um exagero de idade.

O encanto de Daniel Thomaz por Callado não é diferente de gerações de outros brasileiros que, desde o lançamento em 1967, se apaixonaram por "Quarup", considerado a obra maior do jornalista e escritor.

A diferença é que, passada a adolescência, como estudioso de literatura, transformou a paixão juvenil em objeto de pesquisa. E como estava na Europa, decidiu testar a hipótese: se Callado escreveu seis anos para a BBC, esses textos deviam estar registrados de alguma forma.

A busca começou pelo financeiro, a área mais sensível de qualquer entidade e por isso, mais organizada. Sim, descobriu: existe até hoje na BBC uma pasta de recibos e pagamentos em nome de Callado. Nos recibos, o pesquisador encontrou as referências aos textos que o jornalista produziu, com nomes, datas de entrega e transmissão.

"Encontrar documentos inéditos em arquivos históricos hoje em dia, num momento em que os acervos estão bem mapeados, é o equivalente a encontrar uma ilha ainda desconhecida", diz Daniel Thomaz. Nascido em Niterói, Daniel é professor em Oxford, onde defenderá no ano que vem a tese de doutorado sobre os textos do escritor para a BBC.

Quando trabalhou na BBC, na década de 1940, Callado era um jornalista em início de carreira, não tinha se começado a trilhar o caminho do romancista de sucesso, famoso por manter na ficção um texto tão enxuto e objetivo como se preza na reportagem.

Reprodução
Fac-símile de 'Jean e Marie', uma das peças recuperadas dos arquivos londrinos da BBC
Fac-símile de 'Jean e Marie', uma das peças recuperadas dos arquivos londrinos da BBC

QUARUP

Foi só na década de 1960 que produziu seu livro mais famoso, "Quarup", iniciado na prisão, em 1965, no início da ditadura militar, numa cela ao lado de Glauber Rocha.

"Quarup" é um romance histórico, esses em que o enredo ficcional se costura na crônica dos fatos ocorridos: eleito com a maior votação da história, o presidente Jânio Quadros (1961) cria o Parque do Xingu e em seguida renuncia; a crise política envolve o jovem padre esquerdista Nando, que acaba participando da grande festa dos índios xinguanos, o Quarup, que empresta o nome à obra; depois parte para a resistência ao regime militar e... quem quiser saber mais, leia o livro.

As peças produzidas para a BBC mais de 20 anos antes do romance já continham a mistura de realidade e ficção. Os 19 textos enredam fatos da vida real aos criados pelo autor. É o que acontece em "Jean e Marie" (fac-símile nesta página), uma espécie de "Romeu e Julieta" da resistência francesa à ocupação nazista naquele momento.

O pesquisador aponta três camadas no território descoberto: "O estético, para os leitores e o grande público em geral; o crítico, para os estudiosos de sua obra; e o histórico, porque as peças foram escritas durante a Segunda Guerra Mundial por um intelectual brasileiro vivendo o conflito de perto, na Inglaterra."

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Antonio Callado
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Além das peças, Callado produziu também cerca de 50 crônicas que se tornaram programetes radiofônicos. Nelas, o jovem escritor narra aspectos de suas andanças pela cidade de Londres durante a guerra. Ao mesmo tempo em que se refere aos frequentes bombardeios alemães, Callado se encanta em ver a liberdade política que não encontrava no Brasil, sob a ditadura de Getúlio Vargas.

Essas crônicas deverão ser transformadas em livro tão logo seja lançado o volume com as peças.

*

Dez perguntas sobre Antônio Callado para o pesquisador Daniel Thomaz

Folha - Você nasceu em Niterói? Há quantos anos está na Europa? Há quantos na Inglaterra? Há quantos se dedica a Callado?
Daniel Thomaz - Sim, nasci em Niterói. Por coincidência, Callado também. Estou na Europa há 5 anos. Na Inglaterra há um ano e meio. Escrevo sobre Callado desde 2014, quando descobri os documentos, embora tenha interesse por sua obra desde adolescente.

Callado colaborou com a BBC de 1941 a 1947: as peças cobrem todo esse período?
Callado esteve na BBC de 1941 a 1947. As peças vão de 1943 a 1947. Depois de 1942, quando entrou na guerra, o Brasil passou a ter mais destaque dentro do Serviço Latino-americano. De 1943 em diante, a seção brasileira ganhou maior independência e mais horas de transmissão. A partir daí, Callado começou a escrever suas peças.

*Quais eram os temas das peças que escrevia? *
As peças têm como tema a participação brasileira no front italiano; passagens da história do Brasil como a Independência, a Revolução Pernambucana e a fundação do Rio de Janeiro; e personagens históricos como Santos Dumont, Stefan Zweig, Debret, Hipólito da Costa, Rui Barbosa e Castro Alves; além da vida na França ocupada pelos nazistas, como em "Jean e Marie".

O livro tem quantas páginas?
O livro de peças tem 69.896 palavras, o que dá cerca de 267 páginas de texto. Mas, claro, dependendo da diagramação pode ficar menor ou maior.

Dizem que Callado começou a escrever "Quarup" quando foi preso, no início da ditadura militar, em 1965, em uma cela que dividia com Glauber Rocha. Você acredita que isso seja verdade?
É muito provável que Quarup tenha começado a ser escrito em 1965 sim, assim que Callado saiu de sua primeira prisão política, com o Glauber. O livro foi publicado em 1967.

Você se encantou com Quarup na adolescência? Ele foi o seu livro da juventude, como de tantos outros jovens brasileiros?
Sim, li Quarup quando tinha 15 anos e o livro me marcou profundamente. A partir dele, senti um desejo profundo de entender melhor o Brasil e de lutar para transformar a realidade do país. Quarup me engajou. 
 
Quando começou a pensar nessa possibilidade, de que houvesse inéditos de Callado na BBC? Entre o primeiro contato com a empresa e o início da pesquisa, quanto tempo levou para ser atendido?
Encontrei os documentos inéditos na BBC no dia 13 de maio de 2014. Mas fiquei 5 meses em negociação com os arquivistas até conseguir a liberação para trabalhar nos arquivos. Eu estava escrevendo uma conferência na Holanda, sobre romances brasileiros publicados durante a Transição Democrática. Entre eles estava o último romance de Callado, "Memórias de Aldenham House" (1989). O protagonista do romance é um jornalista que deixa o Brasil no início dos anos 40 para trabalhar na BBC durante a guerra, exatamente como Callado. A partir do romance, considerei que uma incursão nos arquivos da BBC para procurar resquícios documentais deixados por Callado poderia valer a pena. 

Quando você defenderá sua tese?
Defendo a tese na Universidade de Oxford em outubro de 2018.

Além das peças, quantas crônicas você encontrou no arquivo da BBC? Do que elas tratam?
Há mais de 50 crônicas. Elas têm temas diversos, como a cidade de Londres durante a guerra, teatro inglês, hábitos e costumes durante o conflito, livros e autores publicados durante a estadia de Callado no país, além de diversos assuntos ligados ao dia a dia. Não sei ao certo ainda quantas palavras.... as crônicas estão ainda armazenadas no meu banco de dados como fotografias. É preciso processá-las da mesma maneira que fiz com as peças, tratando as imagens, convertendo as imagens em texto, e depois editando todo o material para dar conta de questões ortográficas, notas de rodapé explicativas e etc. É um árduo trabalho de edição que ainda está no início. O livro de peças de rádio-drama, por exemplo, demorou mais de um ano pra ficar pronto. Acredito que o de crônicas precise do mesmo tempo.

Você chegou a conhecer o Callado, de alguma forma?
Infelizmente não conheci Callado. Em 1997, quando ele morreu, eu tinha apenas 15 anos. Mas conheci a Ana Arruda Callado, sua viúva, com quem já encontrei diversas vezes no Brasil e na Europa. A última foi no dia 10 de maio de 2017, quando partipamos, junto com o Embaixador, da inauguração da sala Antônio Callado, na Embaixada do Brasil em Londres.


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