Folha de S. Paulo


crítica

Menos pretensioso que Lanthimos, Haneke traz frescor a Cannes

Na dupla sessão europeia da noite de segunda (22) na mostra competitiva de Cannes sucederam-se a nova esperança autoral, o grego Yorgos Lanthimos, com "The Killing of a Sacred Deer" (A Execução do Cordeiro Sagrado), e o mais consagrado dos competidores do ano, o bicampeão Michael Haneke, com "Happy End" (Final Feliz).

Além de buscas a Palma de Ouro, que há dois anos lhe escapou com "O Lagosta", Lanthimos candidata-se ao posto de provocador-mor que até há pouco era de Lars von Trier. Haneke, por sua vez, tenta o que ninguém ainda conseguiu: uma terceira Palma, depois dos triunfos com "A Fita Branca" (2009) e "Amor" (2012).

Os mais velhos primeiro.

No caso, a antiguidade estética é do cronologicamente mais jovem, Lanthimos. Se a ironia distópica de "O Lagosta" remetia a uma versão sofisticada dos melhores episódios da série "Black Mirror", o conto de horror de "The Killing of a Sacred Deer" parece uma adaptação da "Ifigênia" de Eurípedes escrita por Stephen King, dialogada por um admirador do finlandês Aki Kaurismaki e filmada por um fanático de Stanley Kubrick.

Lanthimos não economiza em lentes anamórficas e na trilha eletroacústica para compor um universo claustrofóbico em torno da família de um cirurgião cardíaco, sua mulher e um casal de filhos que é assaltada por um jovem e vingativo anjo da morte. Some a "Ifigênia" as tramas de "Cabo do Medo" e "O Iluminado" e chegará perto. Mas, como acontecera em "O Lagosta", Lanthimos monta melhor seu tabuleiro surreal do que desenvolve e finaliza seu jogo.

Por seu turno, Haneke reoxigena seu cinema com a construção muito menos pretensiosa de "Happy End".

O novo filme combina a sensibilidade para o mal-estar da hora de "Caché" (2004) a uma variação do velho patriarca de "Amor", mais um vez vivido por Jean-Louis Trintignant, agora dono aposentado de um grande empreiteira sediada em Calais.

O cenário não é fortuito, sendo Calais o epicentro das tensões gaulesas frente à crise de refugiados na Europa. Seus ecos se infiltram pelas frestas do filme, mas o foco central concentra-se sobre a conturbada família burguesa de Trintignant, seu par de filhos, descendentes e agregados, remetendo a "A Regra do Jogo" (1939), de Jean Renoir.

Assim como utilizou as então recentes câmeras de segurança como instrumentos narrativos em "71 Fragmentos de Uma Cronologia do Acaso" (1994), Haneke recorre aqui a imagens de celular, chats on-line e e-mails para construir um universo audiovisual contemporâneo em "Happy End".

Além disso, a errância narrativa e a sutileza dramática parecem mais sintonizadas com a nova cinedramaturgia do século 21 do que com a ortodoxia da construção em três atos mais típica das obras de cineastas de sua geração.

O jovem Lanthimos pode ter passado aqui fazendo maior barulho. Mas frescor cinematográfico mesmo quem nos trouxe foi o veterano Haneke.


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