Folha de S. Paulo


Escritor de obra enxuta, mas cheia de clássicos, Juan Rulfo faria cem anos

O mexicano Juan Rulfo (1917-1986) deixou uma obra enxuta, composta por dois clássicos da literatura latino-americana, o conjunto de contos "El Llano en Llamas" (1953) e o romance "Pedro Páramo" (1955). Completam seu legado uma outra novela, "Gallo de Oro" (1980), escritos para o cinema e um conto que ele preferiu deixar de lado.

Toda sua literatura publicada cabe em um só volume de 334 páginas. Mesmo com sua economia de palavras, o escritor, que completaria 100 anos nesta terça-feira (16), "tocou algo comum a todos os mexicanos, de ontem e de hoje", segundo o cineasta e amigo do autor, Arturo Ripstein. "Com sua poética da escassez, foi capaz de dar vida à pobreza do campo, que permanece atual quando nos encontramos com as tragédias que ainda povoam o interior do país", resume o escritor Juan Villoro.

Quando perguntado sobre as razões de sua obra ser tão curta, Rulfo dizia que era porque ele sempre tivera outras ocupações. De fato, trabalhou no departamento de Imigração e no Instituto Indigenista, o que lhe deixava apenas a solidão das madrugadas para escrever. Também dedicou muito de seu tempo livre a retratar o interior do México, empreitada elogiada por Susan Sontag (1933-2004), que o considerava um dos grandes fotógrafos da América Latina.

Mas também é certo que Rulfo destruiu milhares de páginas escritas cujo resultado não o satisfez. Ou seja, a falta de tempo pode ter sido um fator para explicar sua escassa produção, mas os que estudam sua obra reconhecem nela um trabalho refinado de artesania em busca de uma austeridade poética que fosse capaz de definir sentimentos universais.

"Um escritor como Rulfo só pode ser eficiente com poucas palavras porque leu muito, refletiu muito, trabalhou muito. Escrever pouco é assumir um risco gigantesco, porque você pode esvaziar o poético que há na literatura. Mas Rulfo fez isso com uma maestria que, ao contrário, enriqueceu suas obras", disse à Folha a brasileira Nélida Piñon.

Já o argentino Alberto Manguel crê que esse estilo de Rulfo ganha mais relevância hoje. "Nesta época verborrágica, de verdades alternativas e de frases ocas, o estilo de Rulfo pode servir de modelo e de advertência", disse em entrevista, em Buenos Aires.

O centenário de Rulfo está sendo celebrado com exposições e reedições em vários países. No México, o Museo Amparo de Puebla exibe uma seleção de 150 fotos tiradas entre 1945 e 1955. Nesta semana, também estreia por lá o documentário em formato de minissérie "Cien Años con Juan Rulfo", realizado pelo filho do autor, Juan Carlos Rulfo.

Mas de que México fala Rulfo em seus trabalhos?

O pano de fundo de sua obra é o interior do Estado de Jalisco. Uma região de clima quente e árido, marcada pela devastação causada após tantas batalhas da Revolução Mexicana (1910-1920) e da posterior Revolução Cristera (1926-1929), uma espécie de contra-revolução de tom religioso que buscava devolver a influência da Igreja destruída pelo primeiro movimento.

As histórias de "El Llano en Llamas" tratam do abandono em que vive a população dessa região, também de traições e amores destruídos cujo sofrimento atravessa gerações, além do modo como a religião cria uma espécie de superstição e resignação comuns.

Os homens e mulheres retratados, porém, não são ignorantes de sua condição, vivem em conflito constante com a culpa que sentem com relação a seus mortos, e carregam as dívidas sentimentais e ódios de seus antepassados.

Um dos contos, "Talpa", conta a história de dois amantes que levam o marido doente da mulher para tentar ser salvo pela Virgem de Talpa. Secretamente, anseiam para que ele morra no caminho e os deixe livres para viver seu amor. Mas o trajeto vira uma peregrinação cheia de percalços e o doente se transforma em mártir. Quando enfim morre, esvazia, também, o coração dos amantes, que perdem a esperança de levar adiante o romance.

Cada história tem um quê de fábula bíblica. Em "Nos Han Dado La Tierra", um grupo de camponeses vaga e lamenta ter recebido a dádiva de um pedaço de terra, mas que é tão desértica que será impossível cultivá-la. Em "Acuérdate", surge uma mãe que perdeu todos os filhos e de quem se comenta no povoado "ela até tinha seu dinheirinho, mas acabou com ele apenas ao pagar os enterros".

Diferentemente do que possa parecer, os contos não parecem estar escritos para gerar compaixão. Muito menos para sugerir que entre as pessoas tocadas por esse destino trágico reina a ignorância. São todos muito conscientes de seus destinos, e os textos expõem o estoicismo e a naturalidade com que incorporam o sofrimento. A linguagem dos relatos é a popular, com repetições, expressões e silêncios típicos da região, o que revela um conhecimento profundo de Rulfo desse local e de sua gente.

A morte, em todas as histórias, joga um papel importante, não por ser temida, mas por constituir parte indispensável do destino comum.

Isso se mostra de modo mais completo em "Pedro Páramo". O romance conta a história de um homem que, ao cumprir uma promessa à mãe em seu leito de morte, vai ao povoado de Comala visitar quem ela diz ser seu pai, um tal Pedro Páramo, espécie de cacique da cidade.

Apesar de haver uma Comala real no mapa do México, não foi esse o povoado que inspirou Rulfo, e sim as cidades próximas ao lugar onde nasceu, Sayula, e cresceu, San Gabriel, ambas no Estado de Jalisco. Pois Preciado chega a essa Comala imaginária e começa a sentir algo raro no ar. Parece um lugar parado no tempo, as pessoas não falam, sussurram, não parecem ter um objetivo ou uma ambição mais do que viver repetidamente um dia-a-dia no mesmo lugar onde enterraram os antepassados.

Até que Preciado se dá conta de que todos ali estão mortos, inclusive ele e o pai, Pedro Páramo, de quem vai desvelando a trajetória, que expõe também a história de como se exercia o poder por aquelas terras há muitas décadas.

Apesar de ter a injustiça social e a negligência do Estado presentes na obra, sua escrita jamais é de denúncia nem panfletária. Quando fala de deserto e da desolação, está tratando mais da condição humana do que do abandono político da região.

Villoro diz que Rulfo joga luz ao México de hoje, em que uma guerra entre Estado e cartéis de narcotráfico já cobrou mais de 80 mil vidas desde 2006. Em parte, tem razão. Mas Rulfo escapa da armadilha de se transformar num autor estritamente político.

Seu tratamento do tema da violência é sempre literário, mesmo tendo as guerras e revoluções de seu tempo como pano de fundo.

É por isso que o argentino Alberto Manguel prefere evocar a atualidade de Rulfo na imagem do México que construiu com sua Comala e que perdura até hoje.

"O México persiste culturalmente porque Rulfo assim o decretou, e as ficções de Rulfo estão mais arraigadas naquilo que chamamos de realidade, esse imenso entrelaçado de intuições, documentos, imagens e palavras que surgem na mente de todos nós quando dizemos ´México´. Nesse sentido, explica seu país melhor do que o fez Octavio Paz (1914-1998). Paz comentou a realidade. Rulfo a criou", resume Manguel.


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