Folha de S. Paulo


DEPOIMENTO

'Não me sinto mais parte desse mundo', disse Candido em 2014

As primeiras palavras que Antonio Candido disse quando o cumprimentei era de que havia se sentido indisposto pela manhã ao lembrar que eu o visitaria naquele dia.

Aquele era o final de uma sexta-feira, em setembro de 2014, e o professor se queixava das oscilações na saúde.

Ele, que atribuía sua longevidade ao hábito religioso de caminhar, naquele dia preferira permanecer em casa, poupar-se para me receber e não subir a íngreme ladeira da Alameda Joaquim Eugênio de Lima, em São Paulo, onde morava. "Já sou um homem centenário, afinal!", explicou-se esboçando um discreto sorriso.

A troça não era mero gracejo. Naquele encontro, a polidez que lhe caracterizava se alternou com comentários de um órfão de seu tempo.

"Não leio mais nada, não me sinto mais parte desse mundo". Essas palavras - que me repetiu mais de uma vez naquela ocasião - carregavam o peso de falar (e de ser questionado por todos) apenas sobre nomes que já haviam partido - Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Sales Gomes, Anatol Rosenfeld e tantos outros fundadores da moderna academia brasileira.

Era também a justificativa que dava ao telefone quando realmente não se sentia disposto a receber uma visita. Em 2011, com que dificuldade Antonio Candido subiu num tablado da USP para prestigiar o aniversário de 75 anos do romance "Angústia", de Graciliano Ramos.

Imagino igualmente a disposição do professor quando, naquele mesmo ano, aceitou participar da Flip e se aventurar pela sinuosa estrada que leva a Paraty.

Grande ironia, foi muito mais a literatura francesa que me fez buscar Candido do que a brasileira. Ele era um proustiano. Escreveu muito sobre Proust. E a maior parte da aula que tive naquela sexta-feira foi tomada por anedotas sobre o escritor francês, que dizia ser "coisa do passado, leitura da juventude", mas do qual jamais se desvencilhou.

A certa altura, mascarou o fôlego cansado contando, mineiro prosador que era, o causo de uma homenagem a Marcel Proust organizada por Alceu Amoroso Lima no Rio de Janeiro, nos anos 60. Supostos primos de Proust radicados no Brasil foram ao encontro de Suzy Mante Proust, sobrinha do escritor, para se dizerem seus parentes.

"Mas ela entendeu que estavam atrás da herança dele e disse aborrecida que não tinha interesse nenhum em falar com eles", contou rindo.

Estávamos às vésperas da eleição presidencial daquele ano, já no fervor tão polarizado e agressivo que marcaria os anos seguintes.

Perguntei como ele, que havia sido um dos fundadores do PT, sentado ao lado de Sergio Buarque de Holanda na assembleia de fevereiro de 1980, via as concessões ideológicas do partido desde quando assumira o poder. "Continuo petista ainda assim", respondeu, "e gosto de dona Dilma, uma mulher forte".

Sobre Aécio Neves, disse temê-lo, classificou-o como um "playboy" e avaliou que, quando governador de Minas, seu verdadeiro cérebro talvez fosse a irmã, a jornalista Andrea Neves.

Fillipe Mauro é jornalista, pesquisador do Departamento de Letras Modernas da USP, e autor da antologia de contos "Terra Roxa"


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