Folha de S. Paulo


Drauzio Varella fecha trilogia com retratos de mulheres presas

Rodrigo Marcondes/Garapa/Divulgação
Detentas participam da limpeza de um dos prédios da Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru, em São Paulo
Detentas participam da limpeza de um dos prédios da Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru, em São Paulo

"Preciso esquecer tudo o que aprendi nos meus 17 anos em cadeias masculinas", disse o médico e colunista da Folha Drauzio Varella no primeiro dia em que atuou como voluntário na Penitenciária Feminina da Capital, em 2006.

Bastaram poucas horas atrás dos muros que separam da sociedade mais de 2.000 mulheres acusadas dos mais variados crimes -ou beós, como ele escreve- para que o autor do best-seller "Estação Carandiru" (Companhia das Letras) percebesse que pisava em terreno pouco conhecido.

Essa imersão no universo das mulheres presas originou "Prisioneiras"(Companhia das Letras), que chega agora às livrarias, rico em descrições e histórias de vida no cárcere.

Na cadeia feminina, outros fatores ditam a dinâmica local: o histórico abundante de violência sexual na infância, a maternidade precoce e a distância dolorosa dos filhos e a complexidade das relações sexuais atrás das grades.

"Foi uma surpresa enorme. A maioria se relaciona com outras mulheres ali, o que altera completamente a relação de forças", avalia Drauzio, 74. "Há vários tipos de sapatões e de entendidas. E não dá pra dizer que a cadeia criou isso. É algo que faz parte do repertório sexual feminino."

"É um paradoxo a mulher poder expressar livremente sua sexualidade justamente quando está na cadeia."

COR-DE-ROSA

Em comum com presídios de homens, entre as mulheres há uma explosão ainda mais robusta no número de presas, a prevalência acentuada do crime de tráfico de drogas e o domínio das facções do crime organizado, ali apelidadas de Comando Cor-de-Rosa ou Comando de Saias, mesmo que com hierarquia mais frouxa.

Desde o ano 2000, o número de presas mulheres subiu 667% (o de homens cresceu 331%). Saltou de 5.600 para mais de 37 mil. Dessas, 68% são acusadas de crimes relacionados ao tráfico de drogas, cifra inflada pelos efeitos da Lei de Drogas, que não distingue objetivamente usuários e traficantes.

"Essas mulheres não representam nada do tráfico nas ruas", diz. Mas o impacto da prisão reverbera na família toda.

Se, do ponto de vista médico, o desafio de Drauzio foi revisitar a ginecologia e tratar obesidade, dores nas costas e enxaquecas, do ponto de vista do relato literário a novidade foi lidar com as emoções no cárcere, em especial relacionadas à maternidade. "É algo muito doloroso para as presas."

A maioria tem filhos, em geral na adolescência. "Com isso, abandonam os estudos em número absurdo e comprometem seu futuro e o da criança. Vão entrando por um caminho quase sem saída", diz. E vêm o segundo filho, o terceiro...

Nessas condições, o pequeno tráfico tem emergido como alternativa econômica. E explica: "Uma menina dessas, de 25 anos, com três filhos, parou de estudar e mora em bairros sem emprego. Pode ser doméstica, mas levará duas horas para ir e voltar ao trabalho. Com quem vai deixar as crianças?".

O problema é quando ela vai presa. "A prisão do homem gera impacto financeiro na família, quando ele de fato colabora com a casa, mas sua mulher segue cuidando dos filhos. Quando é presa, os filhos se espalham entre parentes e instituições, expostos a todo tipo de violência", conta ele, que diz ter se cansado de ver presas chorando a morte dos filhos de overdose ou tiro.

"Fui criado sem mãe, que morreu quando tinha quatro anos. De criança sem mãe os outros abusam. Tinha um pai presente, e passei por coisas que duvido que tivessem feito comigo se tivesse mãe. Violência mesmo. Não é simples."

As trajetórias mais marcantes, diz, são as mais dolorosas. "As piores são de estupro, muitos na infância. Lembro do jeito com que contaram as histórias, do olhar. Que futuro tem a menina criada nessas condições? É fácil dizer: é traficante, é bandida. Mas o que você seria se passasse por anos de abuso e violência em casa?"

Neste sentido, Drauzio afirma ter sido feliz no título do novo livro. "Prisioneiras é algo que transcende a situação de cadeia. É uma discussão da condição feminina. As mulheres são sempre objeto de um julgamento moral que é sexual. E, nas classes sociais mais baixas, a crueldade machista entra com peso. Mesmo em liberdade, são prisioneiras."

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ENTENDIDAS
Gírias na prisão feminina para definir a orientação sexual das prisioneiras

Sapatões - homo ou bi com estereótipo masculino

Sapatão original - 'virgem' de homens, usam cuecas e não se depilam; recebem nomes masculinos

Sapatão sacola - héteras nas ruas, assumem estereótipo masculino para sobreviver e costumam se relacionar com mulheres de boas condições financeiras

Sapatão chinelinho - ao voltar para as ruas, calça chinelinho de cristal e busca o príncipe encantado

Sapatão badarosca - sustentadas pelas parceiras, "fazem de tudo" na cama

Sapatão pão com ovo - não sabe se prefere homem ou mulher

Entendidas - mantêm as características femininas ao se relacionar com outras

Entendidas ativas - não sentem desejo por homens e sustentam a companheira

Entendidas passivas - são mulheres do lar: limpam, lavam, arrumam e são sustentadas; podem receber visitas íntimas de parceiros

Prisioneiras
Drauzio Varella
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Mulheríssimas - gostam de homens, mas podem transar com mulheres na cadeia, sem assumir a posição de ativa

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PRISIONEIRAS
AUTOR Drauzio Varella
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 39,90 (296 págs.)


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