Folha de S. Paulo


Milhares de livros

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Capa do caderno MAIS
Capa do caderno MAIS

No dia 19/7 de 1998, para celebrar os 80 anos de Antonio Candido, morto nesta sexta (12), a Folha publicou, no extinto caderno Mais!, um especial sobre o crítico literário.

Além de José Mindlin, Haroldo de Campos, Leyla Perrone-Moisés, José Miguel Wisnik, Luiz Costa Lima, Luciana Stegagno Picchio, Walnice Nogueira Galvão, José Paulo Paes, Gilberto Felisberto Vasconcellos, Lygia Fagundes Telles, Alain Touraine, Silviano Santiago, Celso Lafer, Benedito Nunes, e Maria Sylvia Carvalho Franco também escreveram sobre Candido.

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Há pessoas sobre quem é difícil falar, porque não há nada, ou muito pouco, a dizer sobre elas. A não ser que se faça o que fez Raphael Bordallo Pinheiro, no seu famoso "Álbum das Glórias", em que a legenda da caricatura do infante dom Augusto Maria Fernando Cardoso Miguel Gabriel Raphael Agrícola Francisco d'Assis Gonzaga Pedro d'Alcantara Loyola se resume a dizer: nasceu......................................................... é infante e general.

E há pessoas sobre quem é difícil falar, porque há coisas demais a dizer sobre elas. E, quando só são coisas boas, isso se torna mais difícil, porque falar mal de alguém é fácil. Os leitores já devem ter percebido que estou pensando em Antonio Candido, que se enquadra claramente na segunda categoria do difícil. Com a agravante de que não gosta que falem dele ou que escrevam sobre ele.
Ora, convidado a escrever um artigo para o caderno "Mais!" da Folha em sua homenagem, por ocasião de seus 80 anos, fico sem saber o que seria melhor: ignorar sua aversão à publicidade ou respeitar seu íntimo desejo de recolhimento?

O primeiro impulso seria o de ignorar, porque é difícil deixar passar em branca nuvem a comemoração de uma data tão emblemática, em que ele ingressa na faixa dos octogenários indômitos, como foram Drummond, Afonso Arinos, Pedro Nava ou Cyro dos Anjos, e como são tantos outros, felizmente ainda vivos, como Nise da Silveira, Plínio Doyle, Nelson Werneck Sodré, Alphonsus Guimarães Filho ou Barbosa Lima Sobrinho.
Por outro lado, minha amizade de vida inteira com Antonio Candido me obrigaria a não contrariá-lo. Como vêem, é um sério dilema; mas creio que achei um jeito de contornar o problema.

Como temos muitas afinidades e interesses comuns que nos unem, tentarei evocar alguns aspectos de nossas vidas em que eles se tornaram evidentes. Não sei se, fazendo isso, uma separação de personagens (ele e eu) será possível ou não, mas, em todo caso, vou tentar. Parece-me, no entanto, inevitável eu aparecer, mas certamente minha presença será puramente secundária.

Nossa primeira afinidade surgiu quando, ainda jovens, nos sentimos atraídos pela mesma moça, que namoramos alternadamente. Mas a atração passou, e a amizade não se abalou.

Um grande interesse comum, que vem à lembrança desde logo é o amor à leitura. Não sei quantos livros Antonio Candido leu na vida, mas devem ter sido uns bons milhares. Acho até que seria uma boa idéia fazer essa contagem quando ele completar 90 anos (e eu estarei me aproximando do centenário), isso, naturalmente, sem querer limitar a onipotência divina...

Antonio Candido é um proustiano inveterado e respeitável, e sua proustiana me causa uma ponta de inveja _sentimento perdoável num assunto como esse. Mas é uma inveja saudável, porque foi nessa proustiana que fiquei conhecendo edições de Proust e obras sobre ele que não conhecia, e nem sei se chegaria a conhecer.

Amor à arte foi outro interesse comum, que nos deu oportunidade, por exemplo, de estarmos juntos por muitos anos no conselho do Museu Lasar Segall. Só que, nesse campo, ele teve mais firmeza do que eu, quando resolveu deixar todos os conselhos a que pertencia e reservar mais tempo para o que mais o interessava e absorvia _ a leitura, o estudo, e os escritos. Felizmente, houve uma exceção, e ele continua envolvido, há mais de dez anos, no conselho da Vitae, com grande proveito para a instituição e muita alegria para seus companheiros.

Outra afinidade fundamental foi nosso horror ao arbítrio e à violência. Nas duas ditaduras que o Brasil enfrentou desde 1930, sempre se situou abertamente, como eu, no campo da oposição. Mas isso não impediu que me aconselhasse a aceitar o convite para assumir a secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia de São Paulo em pleno regime militar, porque, disse ele na ocasião, com o bom senso que o caracteriza, "se quem quer a abertura política não aceita um cargo como esse, ele será ocupado por quem não quer". E acrescentou que estava convencido de que eu deixaria o cargo se não pudesse permanecer nele com dignidade _o que, aliás, aconteceu.

Seu senso de humor é admirável, e incrível sua capacidade de se divertir e de divertir os amigos, com imitações de personagens, cantorias e "sketches", feitos com frequência junto com Sérgio Buarque de Holanda.
Uma de minhas frustrações na vida foi não ter sido seu aluno, mas isso apenas formalmente, pois sempre aprendi muito com ele, e continuo aprendendo, nos seus livros e nas nossas conversas. Antonio Candido é um exemplo do que pode e deve ser um grande professor.

Receio estar me perdendo com estas notas desordenadas, em que tentei, sem resultado, não falar dele diretamente. Pelo jeito, não era mesmo possível, como também não me foi possível ficar de fora deste caderno.
Sinto-me feliz por termos vivido na mesma época, sempre amigos desde o tempo de solteiros (e olhem que festejo neste ano 60 anos de casado!). Isso por si só já seria uma dádiva do destino, mas tivemos a sorte de mais dádivas _nossas mulheres, Gilda e Guita, participam dessa amizade, e temos a alegria de ver em nossos filhos edições melhoradas de nós mesmos. E ainda por cima somos hoje meio compadres, pois Antonio Candido é padrinho de nosso neto Manu.

Tudo isso é muito gostoso. Acho que foi bom ter na realidade ignorado as possíveis objeções de Antonio Candido e participado desta homenagem. Quem tem tantos amigos como ele tem, não podia mesmo se esconder numa toca, sem permitir que esses amigos manifestassem seu carinho e sua admiração.

José Mindlin (1914 - 2010) foi empresário e bibliófilo, autor de "Uma Vida entre Livros'' (Companhia das Letras).


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