Folha de S. Paulo


Motivo de reflexão

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Capa do caderno MAIS
Capa do caderno MAIS

No dia 19/7 de 1998, para celebrar os 80 anos de Antonio Candido, morto nesta sexta (12), a Folha publicou, no extinto caderno Mais!, um especial sobre o crítico literário.

Além de José Miguel Wisnik, Haroldo de Campos, Leyla Perrone-Moisés, Luiz Costa Lima, Luciana Stegagno Picchio, Walnice Nogueira Galvão, José Paulo Paes, Gilberto Felisberto Vasconcellos, Lygia Fagundes Telles, Alain Touraine, Silviano Santiago, Celso Lafer, Benedito Nunes, José Mindlin e Maria Sylvia Carvalho Franco também escreveram sobre Candido.

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Quem tiver prestado atenção às aulas e à conduta intelectual de Antonio Candido há de ter notado que ele é um homem avesso ao gênero "homenagem". E este depoimento poderia parar aqui. Mas, com todos os riscos implicados, vou me estender um pouco sobre a afirmação.

A vida cultural tem motivações mais do que suficientes para quem a vive na independência intelectual e na militância, ao longo das atividades conjugadas de professor e ensaísta. Nesse caso, trata-se de trabalhar temas e problemas que se impõem com a força da necessidade, associada à paixão de contribuir para pensá-los. Parece-me claro que, para quem se dedicou essencialmente a isso, ser submetido à louvação acadêmica e ao rito da efeméride compulsória é uma contrapartida bastante desigual.

QUIPROQUÓ DA IMPRENSA

Antonio Candido marcou de maneira clara, a meu ver, seus espaços de pertinência. O rodapé literário (quando ele importava para a vida intelectual), revista cultural (quando testemunhou a sua geração), a sala de aula, o livro, a participação política discreta e incisiva. Também discretamente, sem falsa modéstia nem alarde, evitou sistematicamente os espaços tradicionais da congratulação acadêmica e passou a evitar também sistematicamente o novo cenário em que se dá o quiproquó da imprensa. Compreender os desígnios deliberadamente implícitos desse gesto é algo que se impõe, para quem o respeita.

Parece claro também que o assunto da universidade, do ponto de vista de Antonio Candido, não é a adjetivação mas a nomeação substantiva de questões difíceis. A homenagem acadêmica resvala queira ou não para uma constrangedora redução prática de seu objeto no caso o arguto leitor de Machado a uma "teoria do medalhão" a contragosto. O desgosto pelo gênero seria assim, antes de mais nada, uma questão de discernimento crítico de base literária, além de ética.

A CADEIA DE EFEMÉRIDES

Por outro lado o jornalismo cultural, de algum tempo para cá, passou a funcionar por meio de uma cadeia infinita de efemérides. Se esse é um mecanismo natural da memória coletiva, é preciso reconhecer que passou a ser, ao lado da brutalidade corrente, um sinal compulsivo da perda do fio dos assuntos, tanto na sua dimensão histórica quanto na sua força de atualidade. Tacitamente, sem afetar heroísmo nem ressentimento, Antonio Candido colocou-se fora disso.

Faço aqui um esforço de leitura daquele ponto em que a lição do mestre é clara, embora não tão evidente. Ao mesmo tempo, fique dito que ela não supõe um modelo a ser seguido como norma. Configura antes um motivo de reflexão, além de um nítido e às vezes silencioso testemunho.

José Miguel Wisnik é músico, crítico e professor de literatura brasileira na USP, autor de "O Coro dos Contrários" (Duas Cidades) e "O Som e o Sentido" (Companhia das Letras).


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