Folha de S. Paulo


Leia a primeira coluna de Antonio Candido na Folha

O crítico literário, ensaísta, professor e sociólogo Antonio Candido morreu na madrugada desta sexta-feira (12), aos 98 anos, no hospital Albert Einstein, em São Paulo.

Abaixo, a primeira coluna de Candido na seção "Notas de Crítica Literária", da "Folha da Manhã" (que viria a ser a Folha), publicada em 7 de janeiro de 1943.

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Ouverture

o crítico, espera-se geralmente muita coisa. Antes de mais nada, que defina o que é a crítica para ele. Acho isso muito justo, uma vez que ele é um indivíduo que vai emitir opiniões tendentes, em suma, a explicar uma obra ou um autor.

Este aspecto metacrítico do ofício -que é porventura o seu fundamento e o seu mais firme esteio- é, no entanto, às vezes, uma questão de tal modo pessoal, revestindo-se de uma tão necessária imodéstia no seu enunciar-se, que melhor seria pedir ao crítico literário qual a sua ética -quais as imposições que se faz e quais os princípios de trabalho com os quais não transige. O aspecto ético do seu ofício é, sem dúvida alguma, tão importante quanto o primeiro.

Não basta que o leitor se sinta diante de um homem de boa compreensão; é preciso que ele sinta o homem de boa-fé. Uma e outra coisa, os meus leitores só poderão afirmar ou negar de mim com o correr do tempo e dos artigos.

No entanto, sinto-me levado a dizer alguma coisa a respeito da crítica e do crítico. Não exporei uma teoria -que não tenho- nem uma ética -à qual não se faz jus num artigo inicial.

Apresentarei tão-somente uma ou outra sugestão, um ou outro ponto de vista que será como que uma nota promissória que vai por mim assinada sobre os selos da lei, e munido da qual o leitor poderá chamar-me à fala quando não me vir cumpri-la.

Há, evidentemente, uma coisa básica no trabalho crítico, que não pertence à metafísica nem à moral do nosso ofício, pois que é uma qualidade pessoal.

Quero referir-me à penetração. Sem ela, sem esta capacidade, elementar para o crítico, de mergulhar na obra e intuir os seus valores próprios, não há explicação possível -isto é, não há crítica.

No princípio, portanto, coloca-se um dado psicológico, o que vem mostrar que a crítica parte e se alimenta de condições personalíssimas, às quais será escusado querer fugir.

Não há, portanto, coisa alguma que se possa chamar de "crítica científica" -a menos que não se entenda por tal coisa a crítica dos trabalhos da ciência. Entendida como transformação da crítica em ciência, não passa de um dos muitos pedantismos criados pela pretensão dos homens de letras.

Querer, portanto, descobrir fórmulas aplicáveis "objetivamente" que dispensem os fatores estritamente individuais da personalidade do crítico -querer criar uma técnica de crítica- é uma monstruosidade que só não é perigosa porque não é possível.

O fato, porém, da pessoa do crítico ser a base do processo crítico não quer dizer que seja a razão de ser, nem deva ser o seu aspecto principal. Muito pelo contrário. Creio mesmo, firmemente, que o trabalho do crítico só começa quando ele ultrapassa a sua pessoa, num esforço de colocar em primeiro plano aquilo que lhe parece a realidade da obra estudada.

Rejeito, portanto, integralmente –como por mais de uma vez já o tenho feito em artigo– o conceito impressionista que faz da crítica uma aventura da personalidade, um passeio através das obras e dos autores com o intuito exclusivo de penetração e enriquecimento pessoal. Não nego os encantos desse processo, e reconheço a sua necessidade como prolegômeno a toda atividade crítica. Transformá-la, porém, de fase em finalidade, é desvirtuar seu sentido e abusar um pouco do direito de se expor ao próximo. E, sobretudo, arriscar-se a cair na crítica de pretextos –que já não é mais crítica, senão conversa fiada, com todos os seus deleites, não há dúvida, com toda a sua possível fecundidade, não há dúvida, mas que só pode ser tudo isso graças a uma pequena operação com que a qual não se pode ser tudo isto graças a uma pequena operação com a qual não se pode concordar: escamotear a obra e exibir em seu lugar a personalidade do crítico.

Ora, menos talvez uma questão de teoria do que de modéstia, creio que não pode ser este o alvo da crítica. Sobretudo porque acredito que as atitudes intelectuais têm valor em função da época em que se manifestam e a qual se dirigem. Sendo assim, a tarefa do crítico será porventura mais de integrar a significação de uma obra no seu momento cultural do que, tomando-a como um pretexto, procurar tirar dela uma série de variações pessoais. Há momentos históricos em que isto é possível – momentos de hipertrofia da personalidade e de hedonismo literário, nos quais o eu se enfeita e se pavoneia para gozo do próximo e de si mesmo. Neles, os lagos que prendem a obra ao seu tempo se esbatem, são voluntariamente esbatidos, para que possam luzir "as mil cintilações do êxito intacto", com que se embriagam os indivíduos São épocas em que é possível, tanto ao crítico como ao leitor, embeber-se unicamente naquilo que a obra lhe oferece de sugestivo, sem nela procurar mais do que esta espécie de contribuição para o auto enriquecimento.

É o paraíso da crítica impressionista e dos "a propósitos" críticos. Há outras épocas, porém, em que nos curvamos mais ansiosamente sobre as obras, presos de uma necessidade de visão mais ampla, mais total. O leitor transpõe (deve transpor) a zona de influência das sugestões de ordem pessoal para entrar, decididamente, na significação geral da obra –entendendo por tal coisa o sistema de relações que a prendem ao seu momento e a posição dele, leitor, ante ambos. É quase um esforço para não tomar a obra como resultado último da investigação crítica, mas num novo esforço de transcender, que se vem juntar ao que já pôs em segundo plano a própria pessoa, procurar tirar da obra, graças à compreensão dos seus liames com o tempo, a inteligência deste e uma orientação para a conduta. Interpretar a obra, numa palavra, em vista do que ela pode ter explicativo do seu momento. Aliás, no nosso tempo, esta atitude se impõe. Não depende da boa ou má vontade do leitor, da maior ou menor habilidade do autor: é uma imposição, como muitas outras a que não podemos nos esquivar.

Por estas e por outras é que eu prefiro o crítico partidário, que tem um credo –político, religioso, filosófico ou literário– no eterno disponível, que o é sob o pretexto de não cair no sectarismo e permanecer aberto a todas as sugestões das obras.

A disponibilidade emocional é uma das condições sine qua para a interpretação das obras literárias; mas a disponibilidade intelectual é positivamente uma falta de caráter (não no sentido moral, está visto, encore que). O crítico muito se aproxima do pensador na sua atividade. Ambos como lembrava ainda há pouco o sr. Ruy Coelho no número 10 do "Clima", tendem para uma revelação de essências. Num caso, trata-se da vida humana concreta, com os seus problemas, suas ciências, suas angústias, seus desapontamentos e crises. Noutro, o objeto é a vida de fantasia, emanação da primeira. Eis porque Ramon Fernandez queria que se definisse a crítica como uma ontologia imaginativa. Entre uma e outra não existe oposição, antes, ligamentos íntimos e orgânicos porque a imaginação, no ensinamento precioso de Charles Morgan é o sonho de Adão: ele acordou e o achou verdadeiro".

Isto posto, eu deixo ao leitor a liberdade e o cuidado de julgar o que seja um crítico sem doutrina.

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Um último reparo sobre o assunto: é evidente que a atitude do crítico varia conforme o gênero, de obras que tem de criticar.

Numas lhe será mais possível do que noutras pôr em evidência as suas preocupações básicas, demonstrar melhor aquilo que se propôs. No estudo das obras do passado, por exemplo, muito mais fácil se torna aquela busca do seu entrosamento com as condições culturais do seu momento, em virtude do panorama mais ou menos amplo que a distância no tempo permite descortinar. Nas obras contemporâneas este trabalho já se torna mais difícil, variando a dificuldade conforme o gênero.

De um modo ou de outro, porém, compete ao crítico assumir com clareza o papel que lhe impõe o seu tempo. Repitamos: em vez de tirar da obra uma série de modulações puras ("Le visible et serein soufle artificiel De I'inspiration, qui repagne leciel"...), a sua função é relacionar, por em contato, explicar à luz do momento. Nunca jamais ele (o homem) foi tão momentâneo como agora", disse Mário de Andrade, com precisão e justeza, na sua recente conferência sobre o movimento modernista. E o somos em ambos os sentidos: momentâneos porque amarrados estreitamente às menores injunções da hora, e momentâneos porque a nossa obra, como a obra de toda a fase de transição, traz em si a marca efêmera das coisas circunstanciais. Assim, portanto, o esforço para esclarecer os acontecimentos presentes é a obrigação primeira do intelectual que não sente a vocação da atividade direta e que, por outro lado, não quer encerrar-se num marginalismo que tanto tem cômodo quanto de pouco louvável.

Entre as inúmeras vias para se chegar aos acontecimentos, entre as várias maneiras de abordá-los, porque não colocamos o da compreensão das obras do pensamento e da sensibilidade? Nascidas de exigência imperiosas do espírito humano, trazem em si a essência dos sonhos, das aspirações e das tentativas de uma época. É nelas que se aninham as vagas possibilidades do futuro e que são julgadas as tentativas do passado. Tácita ou explícita, consciente ou inconscientemente, nelas se encontram as mais variadas manifestações da inteligência e do coração dos homens. Sem elas, é impossível compreendê-los, pois que nelas se condensam os seus mais diversos anseios, as suas vitórias, as suas derrotas, as suas fraquezas e a sua força. Ao encontrar neste mundo ao lado do mundo, crítico e leitor se sentem como que suspensos ante e peso da sua tradição e a riqueza das suas possibilidades. Penetrá-las, torna-se então uma tarefa cuja importância só é ultrapassada pela daqueles que as vão realizar. Assim compreendida, pois que a ela incumbe uma parte desse trabalho, a críticas - literária, artística, filosófica, científica –nos aparece como um instrumento de conhecimento e um guia de caminhos difíceis, e a sua utilidade não pode ser negada.

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Para tudo isto, o crítico não dispõe de nenhuma faculdade extraordinária –como levantar as tampas dos crânios ou farejar o princípio dos princípios. Não se esperem dele, portanto, artigos iluminados, em que se esclareçam coisas misteriosas. O de que ele dispõe, como toda gente, são cinco sentidos e mais um pobre cérebro. Por eles tem de passar tudo o que vem pelo mundo –das coisas, dos homens e dos livros. Não lhe é dado realizar o milagre da perfeita objetividade e da pura compreensão, uma vez que não lhe é possível escapar a esta humaníssima condição. O seu trabalho aparece, necessariamente, como um contato pessoal com as obras, e o seu esforço deve ser o de transcender esta circunstância afim de não cair no impressionismo. Daí a necessidade que acima se indicou da sua posição de quem procura afastar o caráter estritamente pessoal da leitura e da reflexão para colocá-las ao serviço da sua época e das suas necessidades. A interpretação de uma obra devendo se basear na busca daquilo que, nela, representa a parte mais significativamente ligada ao espírito da sua época. Se também este esforço for excessivamente momentâneo, paciência. O crítico é, por excelência, o escritor que passa, que mais rapidamente envelhece; e a sua missão estará cumprida se puder ter contribuído para orientar os seus contemporâneos.

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Contaram-me que Vuillermoz, crítico musical francês, nega-se terminantemente a conhecer pessoas dos seus criticados ou criticandos. Com efeito, o contacto pessoal dá, às vezes, uma direção nova às nossas, ideias sobre um autor, sobretudo, torna-se difícil a isenção de ânimo que deve ser a qualidade básica da nossa ética profissional. Por isto, o caso extremo de Vuillermoz tem uma significação muito grande, muito larga, para quem se ocupa do ofício de criticar. Ele ilustra o que se poderia chamar a ascese do crítico, a sua atitude antes rígida que diz um –"não"– terminante qualquer velocidade de se derramar em simpatias pessoais e compadrismos literários; de quem prefere o isolamento e a perda de muita comodidade ao que lhe poderia parecer uma traição ao seu dever de dizer as coisas retamente. E de quem, por outro lado, sofria a empatia, mesmo a inimizade, em proveito desta retidão de espírito. Só assim lhe será possível ter forças para exercer a sua missão –que é o dever de nada enunciar que não seja única e exclusivamente aquilo que lhe parece a verdade. Nesta seção que hoje assumo, não será outra norma de conduta. Se nem sempre é possível dizer tudo aquilo que se pensa, é sempre possível dizer apenas aquilo que se pensa. É o que farei.


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