Folha de S. Paulo


Belchior é homenageado por cantores e público em festival de música no CE

Já passava da uma e meia da manhã da segunda-feira (1º) quando João do Crato subiu ao palco e cantou "Hora do Almoço", o primeiro dos muitos hits compostos por Belchior, cantor que morreu na madrugada deste domingo (30), em Santa Cruz do Sul (RS).

"São muitas canções que embalam as nossas vidas e as nossas memórias. Ele deixou muita coisa boa, tem muito para celebrar hoje" diz Carolina Holanda, educadora, que dançava acompanhada de Miguel Cordeiro, músico, "é muita verdade que transborda através das canções dele".

A reação das pessoas em Fortaleza ao acordarem e saberem da morte do cantor começava com a descrença –" Nem acharam ele, como é que sabem que ele morreu? Belchior nunca iria morrer"– até a confirmação da notícia da morte do cantor no meio a manhã do domingo 30 de abril. No último dia do maior festival de arte e música do Ceará, o Maloca Dragão, Belchior voltou ao palco da cidade.

"Eu esperava que ele fosse voltar num grande show, não desse jeito." Nayra Costa balançava a cabeça, referindo-se ao poeta. Ela o homenagearia como parte do elenco no "Tributo dos Artistas Cearenses ao Rapaz Latino-americano", que encerrou o festival neste domingo.

Montada em menos de 24 horas, a apresentação levou ao palco Fernando Catatau, Mona Gadelha e Daniel Peixoto, entre outros, cantando hits e lados B do cantor. Fausto Nilo, compositor parceiro e amigo de Belchior desde o colégio, foi a baixa no grupo, por não aguentar a emoção. Ficou em casa preparando-se para a despedida.

"É a vida inteira escutando Belchior, sua mãe canta como canção de ninar", disse Ivna Girão, 32, coordenadora de conteúdo do festival, que fazia uma pequena pausa para seguir o dia.

" A minha família foi morar no Amapá, minha mãe cantava Belchior sentindo saudade daqui. Tem um luto medonho hoje."

Nascido em Sobral, a cinco horas de carro de distância da capital Fortaleza, o cantor deixou uma legião de órfãos que passaram o dia entoando e escutando trechos de letras.

"Nosso querido Belchior Morreu", foi a mensagem enviada para os jornalistas convidados para a cobertura do evento. Na sala de produção alguém pergunta das cantoras da banda As Bahias e A Cozinha Mineira, que cantaram "Hora do Almoço" em seu show na noite anterior. Elas já tinham embarcado de volta para SP.

"A gente sempre homenageia Belchior quando vai cantar, pelos seus 70 anos, pela sua poesia." Assucena Assucena, umas das vocalistas, respira para continuar: "Para minha felicidade o público nunca cantou tão ardentemente, muitos cearenses vieram depois do show falar para a gente, vocês tocaram Belchior, que alegria! Perdemos um grande artista, mas a herança dele é sua obra, sua musicalidade para o povo brasileiro com muita luta."

O choro, certo, começou cedo. "Na passagem de som já estava todo mundo em lágrimas" contou, antes de subir ao palco, a cantora Soledad, que entoaria o hino "Rapaz Latino Americano". "Os dizeres, as palavras de sabedoria, as provocações filosóficas que tiravam a cidade e a gente do lugar, Belchior é muito presente em nós".

O clima não era de pesar "Ele era nosso grande poeta das ruas, falava a linguagem do povo, um marginal...é emocionante abrir essa história" foi a percepção de Fernando Catatau, da banda Cidadão Instigado, o primeiro artista a subir ao palco, a 0h40 da segunda-feira.

Parece que todo mundo na cidade tem história para contar do artista.

"Eu trabalhei com ele na inauguração de um casarão em Sobral. Era muito brincalhão, no meio do show ele dava um golpe de caratê e um grito, soltava uma energia, ele tinha isso." Francisco Otavio de Sousa, o Chicão, suspira com a lembrança. A alegria recordada por ele parecia ter abandonado o cantor nos últimos tempos, a morte era bradada nas rodas de conversa como fruto da tristeza dos últimos tempos.

"Ele cantava (em Divina Comédia Humana) sobre o analista. O analista é o Barbosinha, que morava em São Paulo, só ele sabe o por quê Belchior morreu", dizia Paulo Linhares, presidente do Centro Cultural Dragão do Mar, que abriga o velório público nesta segunda-feira.

"Para mim a crise dele tem a ver com a crise do próprio modelo do mercado musical. Ele chegou a confidenciar para um amigo nosso que não aguentava mais o negócio musical."

Espalhada pela rua, em pé, sentada nos muros dos prédios vizinhos, a plateia seguia incansável, emocionando-se a cada música. "Eu tenho esperança no que foi dito por ele, no que é dito e sempre será", termina Miguel Cordeiro, antes de voltar para cantar que "Deixemos de coisa, cuidemos da vida, pois se não chega a morte ou coisa parecida, e nos arrasta moço sem ter visto a vida".


Endereço da página:

Links no texto: