Folha de S. Paulo


análise

Obra de Belchior foi marcada por crônica de costumes e inadequação

É muito simbólico que o primeiro sucesso de Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes tenha sido "Na Hora do Almoço", canção vencedora do 4º Festival Universitário da MPB, em 1971.

Dela, uma cena familiar dura e bonita —"no fundo do prato comida e tristeza/ a gente se olha, se toca, se cala"—, se abre um veio que marcou toda a sua obra, ora uma crônica muito refinada de costumes, ora a expressão de um sentimento de inadequação e estranhamento, às vezes fatalismo.

Seja nas memórias do sertão de onde veio (e onde "era alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais", como diz "Galos, Noites e Quintais); nas descobertas da vida adulta e da cidade grande ("quero a sessão de cinema das cinco pra beijar a menina/ e matar a saudade na camisa toda suja de batom"); quando se via estranho diante do mundo e sua "manus motora"; ou quando transbordava idealismo ou mesmo desalento, Belchior expressava uma inquietação de quem estava sempre prestes a partir.

De Sobral para Fortaleza, de lá para o Rio, depois São Paulo, de praças públicas a programas de TV, hospitais, rodoviárias, grandes palcos e gravadoras, e depois nada disso, o cantor e compositor passou como um trovador remoendo —cito aqui o poeta recifense Alberto da Cunha Melo— "a lembrança de seus pássaros, de seus filhos, de seu povo".

A música de Belchior nasceu do entrelaçamento do sertão e do mar, do repente e de Beatles, de Bob Dylan e Ângela Maria, de Camões com Catulo da Paixão Cearense.

Muito disso sob a guarda do poeta Augusto Pontes, que em Fortaleza seria o grande guia do que depois se chamou Pessoal do Ceará —um magote de gente como Amelinha, Fagner, Ednardo, Fausto Nilo, Teti, apaixonados todos por literatura, música e cinema.

Estudante de medicina, diferentemente dos outros, em boa parte oriundos da faculdade de arquitetura, Belchior foi o último a se agregar.

Com o grosso da obra que importa produzida entre 1971 e 1977, período que abarca discos e compactos como "Mote e Glosa", "Alucinação", "Na Hora do Almoço" e "Coração Selvagem", o cantor e compositor gravou seu nome na história da música brasileira com versos profundos e lapidados, um timbre de voz inconfundível e uma personalidade livre, curiosa, fugidia e fascinante.

Desde o começo dos anos 1980 sua produção musical claudicava, com discos sem brilho como "Bahiuno" (1993) ou remoendo a própria obra em versões erráticas, vide "Autorretrato" (1999), acertando a mão vez ou outra, como em "Um Concerto Bárbaro" (1995) que tem arranjos de violões bonitos demais.

A trajetória errática dos últimos anos, ainda entulhada de perguntas, e o que parece ter sido um esgotamento criativo desde os 1970 só aguçaram a curiosidade de novas levas gerações de fãs, os filhos que ele profetizou que seriam os mesmos e viveriam como seus pais.

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