Folha de S. Paulo


'Medo do estrangeiro nos domina', diz sociólogo francês; veja entrevista

Troche
Ilustração do artista Troche
Ilustração do artista Troche

"A Era do Vazio", "O Império do Efêmero". Os títulos dos principais livros de Gilles Lipovetsky indicam sua abordagem da condição contemporânea: um universo hiperindividualista e hiperconsumista, que prometia emancipação em relação a tradições e um gozo material ininterrupto, mas acabou por criar aquilo que ele descreve como "hedonismo ansioso".

A repetição do prefixo "hiper" é uma das marcas do pensador francês. Ele contrapõe à expressão pós-moderno (no sentido de diluição do moderno) o conceito de hipermodernidade, vendo nesse estágio -o presente- uma hiperbolização de vetores como o direito individual, a tecnociência, a democracia e o mercado, que para ele se tornaram incontornáveis. Para o bem e para o mal.

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Folha - O Brexit, o fluxo de refugiados e o terrorismo estão fazendo a Europa repensar uma identidade que parecia estável, resolvida?
Gilles Lipovetsky - Há na Europa de hoje uma grande inquietação identitária, provocada pela globalização econômica, gerando nas coletividades o medo de serem submersas por outras nações, de perderem suas identidades. Um medo que se manifesta no sucesso dos movimentos populistas e traduz a fragilização de indivíduos em geral não muito diplomados e com atividades econômicas na base da pirâmide social.

Esse processo se acelerou na década de 1990 e no começo do século 21, marcando a novidade de nossa época em relação aos anos 1960 e 1970, que não conheciam essa inquietação, que se apoiavam na fé no progresso, na crença de que poderíamos tratar dos grandes problemas pela política e pela tecnologia.

Um livro recente de Alain Finkielkraut, "A Identidade Infeliz", afirma que nossas sociedades são fraturadas e vivemos uma identidade diferente de épocas anteriores, quando os franceses, por exemplo, não tinham dúvidas sobre sua identidade. Hoje, o medo do estrangeiro nos domina.

O ressurgimento dessas questões não contrasta com sua descrição do hiperindividualismo contemporâneo?
O mundo "hiper", tanto na economia quanto no plano do indivíduo, se traduz por um tipo de frenesi de consumo e informação que demanda maior autonomia das pessoas, mas ao mesmo tempo nos fragiliza, porque liquida antigas formas de controle da sociabilidade pela tradição e pela religião. Tradição e religião não desaparecem, existem sempre, mas não são mais estruturantes, não nos dão mais força interior. As pessoas estão marcadas pela insegurança no trabalho e por conflitos pessoais, rupturas de casais etc.

Essa insegurança pessoal se difunde no coletivo. A individualização do modo de vida, a perda do poder da política e a globalização convergem para causar esse estado de insegurança. O mal-estar identitário que observamos é manifestação disso.

Esse mal-estar, que o sr. descreve como "ansiedade do hedonismo", precede a questão das identidades nacionais?
Exatamente. Desde o iluminismo do século 18, a ideologia do progresso, calcada na ideia do desenvolvimento da ciência, da técnica e da democracia, prometia mais razão, mais liberdade e mais bem-estar. Era a ideologia otimista da marcha da história.

O paradoxo é que temos cada vez mais ciência e tecnologia, democracias estáveis, mas isso não resultou no melhor dos mundos, mas num mundo inquieto, que se materializa, em primeiro lugar, no trabalho, porque a globalização neoliberal fez com que a competição seja planetária e a situação econômica possa mudar rapidamente. Não há mais estabilidade. É raro que seu ofício e sua empresa sejam os únicos durante toda sua existência.

Em segundo lugar há uma insegurança íntima e afetiva. A multiplicação dos divórcios, o dilaceramento dos casais e questões como a guarda dos filhos fazem com que as pessoas saibam, quando casam ou decidem viver juntas, que há uma probabilidade grande de que isso não dure para sempre.

Em terceiro lugar, há uma insegurança global que atinge a personalidade: depressões, estresse, ansiedade, consumo de psicotrópicos e tranquilizantes.

Há ainda uma quarta insegurança que é sanitária: quanto mais envelhecemos, quanto mais temos boa saúde, por meio de medicamentos e cirurgias eficazes, mais temos uma obsessão em relação à saúde. Quando as pessoas se reúnem, o tema da saúde se torna onipresente. Cuidados alimentares, epidemias, emissões de gases e aquecimento climático -temos medo de tudo, e isso se deve à onipresença da informação. Hoje, de modo permanente, as mídias dão informações sobre saúde e corpo -e isso é bom, mas, ao mesmo tempo, cria uma insegurança que, junto com as outras, se soma à insegurança identitária de que falei.

Com a eleição de Trump, passou a circular a ideia de que vivemos na era da pós-verdade. O sr. concorda com isso?
O diagnóstico não está bem claro, não é a primeira vez que se difundem falsas informações. Nas democracias, a política está associada à competição e forçosamente implica seduzir a opinião pública ou atemorizá-la -e então se difundem informações falsas. O que parece novo é a amplitude com que as "fake news" se difundem pelas redes sociais, o fato de que agora essas notícias falsas são postadas por pessoas relativamente desconhecidas, que não têm responsabilidade política pelo que divulgam.

Isso tem impacto grave. Os britânicos votaram o Brexit a partir da informação de que haveria 350 milhões de libras enviadas semanalmente à União Europeia, mas esses números eram falsos. Depois, partidários do Brexit disseram "sim, nos enganamos", mas o estrago estava feito.

No caso de Trump, o fenômeno novo é ele ser capaz de dizer contra-verdades inacreditáveis e isso não perturbar ninguém. A novidade é que se pode dizer coisas falsas sem tomar precauções, como se não tivesse importância.

Trump elevou isso a uma escala inacreditável. Mas nele não há só "fake news", não é só pós-verdade. Ele mudou a retórica política. Fazia muito tempo que não víamos um político lançar injúrias indignas sobre minorias, mulheres, quebrando o superego político e as regras do bem falar de Washington.

Há risco novamente de associação da técnica com o totalitarismo, como no nazismo?
Hoje, muitos filósofos defendem a ideia de que a técnica se conjuga com o mercado para criar um universo totalitário. Digo que vivemos num mundo hipermoderno porque os limites da técnica não cessam de recuar, o universo técnico invade tudo. Antes, a religião e as tradições regulavam os problemas humanos; hoje, há "experts" científicos para tudo. Daí a ideia da onipresença tentacular da técnica nas relações do mundo contemporâneo.

O que pensar disso? A técnica é um vetor central da modernidade e da hipermodernidade. Mas há outros, notadamente o mundo político, democrático e individualista. Não é a mesma lógica. O mundo moderno é também o mundo de valores como igualdade e liberdade, não podemos eliminar pura e simplesmente os valores que inventaram a modernidade. Há um conflito entre o mundo da técnica e o dos valores. Mas as coisas não estão fixadas de uma vez por todas.

Fala-se de um novo totalitarismo, com novas formas de Big Brother que o caso Snowden colocou em relevo, mostrando como os americanos espionaram milhões graças a novas tecnologias. Ao mesmo tempo, isso provocou escândalo e demandas de controle. Quer dizer que o poder pode exigir regras para a vigilância. O mundo da técnica não tem regras, só conhece a eficácia, ao passo que a política e os ideais morais colocam barreiras. Nesse sentido, não estamos mais no mundo do totalitarismo.

Devemos trabalhar para que valores democráticos, humanistas, não sejam engolidos pela técnica. Não devemos nem demonizar a técnica, que nos traz muita coisa, nem fazer da técnica uma religião. Devemos ter uma relação política com a técnica e trabalhar para que as nações não sejam imobilizadas pela técnica.

Como garantir que valores humanistas não sejam engolidos pela técnica em países sem democracia e com carência educacional?
A democracia é uma jovem senhora, começou sua aventura no século 18. Nos países europeus e na América, foi preciso mais de um século para chegar a uma democracia estável. Nem todos os países estão nesse nível, mas isso não quer dizer que não poderão chegar nele. A história hipermoderna vai forçosamente desenvolver a escolarização. Eis uma razão para não ser totalmente pessimista: o universo da tecnociência apela ao desenvolvimento da inteligência e da escolarização. É inevitável.

Essa população escolarizada por razões econômicas acabará criando valores contrários ao uso ditatorial da técnica?
Não quer dizer que terão sucesso, mas o sistema caminha no sentido do bom senso. Estamos na sociedade do conhecimento. Hoje, o maior capital é a inteligência. Novas tecnologias são fundadas no conceito, não na força física.

É preciso dizer aos países em vias de desenvolvimento: não repousem sobre sua riqueza material. A verdadeira riqueza, hoje, é a inteligência dos homens. Para desenvolvê-la, é preciso escola, formação, professores. Educação não é despesa, é investimento no futuro. André Malraux dizia que o século 21 seria religioso. Penso que deve ser escolar. É nossa única via. Não para resolver todos os problemas, mas para viver melhor.

Otimismo sem utopia...
A hipermodernidade é a ruína das utopias capazes de inflamar a sociedade. Frente ao mercado capitalista, que todos criticam com razão, não há contramodelo crível. Há reformas, mas pequenas.

A democracia está ameaçada, no Brasil há essa horrível onda de corrupção, mas não há outra solução a não ser as grandes forças da modernidade: mercado, democracia e técnica. Ou ficamos desolados, dizendo que tudo é horrível, ou devemos viver e fazer tudo isso evoluir com inteligência. Inteligência exige investimento dos Estados no sistema educativo.

O mundo hipermoderno carrega em si o seu contrário. Há muitos fatores positivos, fizemos recuar as grandes calamidades, a fome, a mortalidade infantil, as famílias numerosas. Mas, ao mesmo tempo, esse mundo não produz a felicidade. Face a isso, que fazer? O Estado não tem a responsabilidade de criar cidadãos felizes, mas de dar instrumentos para que possam pensar melhor, resistir às "fake news", acessar um universo técnico que fornece bilhões de informações na web, escola e informação que permitam às pessoas fazer coisas criativas na vida privada, na arte, na literatura.

O sr. falou, citando Malraux, do caráter religioso do século 21. No Brasil temos um retorno da religião, representado por evangélicos, que se opõe ao hedonismo hipermoderno.
A religião não é uma ameaça, apenas o integrismo, e as religiões não são todas iguais. Assistimos, desde os anos 1970, ao que se costuma chamar de revitalização do religioso nas sociedades ricas, e mesmo no Brasil, onde os evangélicos têm impacto considerável. Esse fenômeno não é um retorno à religião, não é um arcaísmo, mas resultado do que no meu último livro chamo de mundo da leveza, consumista, individualista, que desorienta o indivíduo, faz desaparecerem os enquadramentos tradicionais. Certo número de pessoas vive isso de modo insuportável, busca algo que lhes dê uma certeza.

O paradoxo é que o mundo hiperindividualista engendra seu contrário: indivíduos que aceitam se dobrar a regras coletivas, tornando-se de certa maneira cegos.

O universo individualista e consumista arruína enquadramentos, cria insegurança psicológica, desordem de personalidade -é aí que certas formas de religião retomam algum tipo de poder.

O Império do Efêmero (Edição de Bolso)
Gilles Lipovetsky
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Temos na Alemanha, na França, na Grã-Bretanha, pessoas que nasceram e foram criadas nesses países e cometem atentados terroristas; são em geral de perfil psicológico marcado pela insegurança, por uma imagem fraca de si mesmas.

O individualismo dá liberdade, mas também cria fraqueza narcísica. As pessoas não amam suas vidas, não amam o que são, e isso pode explicar o engajamento desses jovens na "jihad" ("guerra santa"), que lhes devolve orgulho de si. Lutam por vida eterna etc., recuperam a autoestima pelo enquadramento fundamentalista radical. É o paradoxo do mundo hiperindividualista. Gera autonomia e liberdade, e ao mesmo tempo cria seu contrário.


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