Folha de S. Paulo


Análise

Em tempos de recuo democrático, diálogo e civilidade são urgentes

Troche
Ilustração do artista Troche
Ilustração do artista Troche

Em seu magnífico livro "Civilização", o historiador Niall Ferguson diz que o fator decisivo para a supremacia conquistada pelo Ocidente foram suas instituições. Isso inclui sistemas de representação política, direitos individuais e propriedade privada, mas não só isso.

Há um conjunto de ideias e modos de vida em jogo. Ferguson fala da "competição", fruto direto da fragmentação do moderno mundo político europeu, em particular após a Reforma. Fala, seguindo Weber, da ética do trabalho e da progressiva vitória da ciência e do conhecimento aplicado, cujo primeiro e espetacular resultado foi a Revolução Industrial.

Ferguson é provocativo. Sua tese faz troça do vitimismo histórico que frequentemente pautou nossa interpretação da formação latino-americana. Ele contrasta Locke e sua elegante defesa dos direitos naturais com o racismo grosseiro de Simón Bolívar e seu desdém pelo império da lei.

É evidente que há nisso tudo o risco da caricatura. E, se é verdade que o Ocidente produziu o Louvre e "The Bill of Rights", é certo que também criou Auschwitz e o Gulag soviético.

A hegemonia do modelo ocidental parece ter atingido seu ponto máximo em algum momento do final da passagem do século 20 para o 21. Hegemonia feita, diga-se de passagem, menos pela força e mais pela sedução do consumo, pela eficiência econômica e pela força das ideias. Foram anos exuberantes. Entre meados dos anos 1970 e meados da década passada, o número de democracias passou de menos de 40 para perto de 100 países.

Foi então que sobreveio o mal-estar. A Freedom House, em seu último relatório, identificou um "deslizamento" da democracia, no plano global, pelo décimo primeiro ano consecutivo. O recuo ocorreu, em boa medida, entre as grandes democracias. O populismo eletrônico, a radicalização, o nacionalismo e a xenofobia são alguns de seus sintomas. Não há um fato definidor para todos esses fenômenos, mas há um drama exemplar: os cerca de 2 milhões de migrantes e refugiados que chegaram à Europa em 2015 e 2016.

O drama nos leva à questão dos valores. À pergunta sobre o que, afinal de contas, nos define como civilização. Um exemplo? Comunidades muçulmanas, nos arredores de Paris e Berlim, desafiam valores básicos da igualdade de gênero. Mas nos convocam a uma segunda ordem de valores: a compaixão e a tolerância cultural.

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Há muitas perguntas. Igualdade x liberdade; consumo x preservação; risco x proteção social; leveza x heroísmo; identidade x cosmopolitismo.

A resposta talvez resida na intuição do filósofo Isaiah Berlin: somos destinados a viver em um mundo de valores simultaneamente excludentes e "verdadeiros". Daí a urgência do diálogo e da "civilidade". É o convite do Fronteiras do Pensamento 2017.

FERNANDO SCHULER é professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento


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