Folha de S. Paulo


Dois anos após a morte do filho, Nick Cave atinge auge de sua popularidade

Nick Cave, 59, está exposto. Quase 40 anos após o início de sua carreira, à frente do grupo The Birthday Party, o cantor e compositor australiano admite que passou a revelar muito de si nas músicas.

"As coisas mudaram porque a pele acabou de ser arrancada", diz à Folha, em Londres. "Não tenho muita escolha sobre o que escrevo."

Cave se refere à perda do filho Arthur, de 15 anos, que morreu em julho de 2015 após cair de um penhasco no sul da Inglaterra -exames mostraram que o garoto ingerira LSD.

Toby Melville/Reuters
Nick Cave chega para premiação em Londres em retrato de dois anos atrás
Nick Cave chega para premiação em Londres em retrato de dois anos atrás

A tragédia ocorreu durante as gravações de "Skeleton Tree", 16º álbum de Nick Cave & The Bad Seeds, e influenciou o disco, marcado por um clima de perda e melancolia. Adiou também o lançamento da coletânea "Lovely Creatures", que conta 30 anos da história do grupo e agora finalmente chega ao mercado.

O material, cuja versão mais luxuosa (R$ 233 no site nickcave.com) tem três CDs, um DVD e um livro de 256 páginas com ensaios, fotos e réplicas de documentos, oferece uma visão panorâmica da carreira.

Há 15 álbuns de Nick Cave & Bad Seeds, de "From Her to Eternity" (1984) a "Push the Sky Away" (2013). São examinadas em textos e fotos fases pelas quais o grupo passou, influenciadas por rock, experimentalismo, baladas, religião, romantismo e o sul dos EUA.

DISCOGRAFIA BÁSICA - Oito obras fundamentais na trajetória de Nick Cave & The Bad Seeds

Diversos artistas lançam coletâneas após o auge da carreira. Já Cave vive hoje seu momento de maior reconhecimento e popularidade.

Atualmente ele promove em turnê "Skeleton Tree", um dos melhores discos de 2016, com ingressos esgotados na maioria das apresentações. O Brasil pode ser incluído na agenda em 2018, mas a passagem não foi confirmada.

Cave também acaba de lançar o documentário "One More Time With Feeling" e quer levar ao cinema seu romance "A Morte de Bunny Munro".

O processo criativo mescla tempos. Se a coletânea é revisionista, o documentário traz o cantor digerindo a dor permanente da perda do filho.

Leia trechos da entrevista concedida à Folha.



Folha - No filme "20.000 Dias na Terra", você diz que seu maior medo é perder a memória, a capacidade de voltar e lembrar coisas. Esse trabalho foi uma forma garantir que memórias fossem preservadas?
Nick Cave - Não estou certo. Foi uma oportunidade de deixar as pessoas cientes do impacto dos Bad Seeds como uma unidade. Talvez funcione como um álbum de família, uma coleção de memórias. Não sou muito chegado a nostalgia. Há alguma coisa que sugere o fim de coisas, e desconfio bastante disso. Os Bad Seeds se sentem muito vitais no atual momento.

Dá claramente para ver as fases na coletânea. Experimentação e agressividade do início, calmaria na segunda fase e a partir de 2004 um salto para um patamar totalmente diferente. Você as reconhece?
Não reconheço. Sou o último a entender a narrativa dos Bad Seeds. Fãs são muito mais conectados às músicas. Sinto que o trabalho em si é o que me leva adiante e se transforma num mecanismo de sobrevivência. É sentar e escrever, escrever e escrever, e atrás de mim há esse detrito deixado para outras pessoas olharem, avaliarem, gostarem. Sinto-me bastante conectado ao produzir, escrever, a dar a vida a essa coisa. O ouvinte ideal tem um entendimento mais profundo das músicas do que eu.

Letras suas, especialmente aquelas que se referem a religião, sugerem uma busca por algo. Você tem um sentimento de missão cumprida, de que chegou a um destino?
Num nível prático, nunca estive num lugar e pensei "é aqui que eu vou viver para sempre". Existe um movimento constante. É uma necessidade de continuar a seguir em frente, um tipo de necessidade patológica. Você não precisa ser um gênio para olhar em volta e ver que o que mata o espírito criativo é a estagnação. Nós produzimos álbuns que desafiam o público. Quando você ouve um dos nossos álbuns precisa decidir se ainda gosta do Bad Seeds ou não.

Há um ensaio na coletânea "Lovely Creatures" sobre lugares onde viveu, como São Paulo, e a falta de influência deles sobre seu trabalho. Foi uma atitude deliberada de não permitir ser influenciado?

Nada que eu tenha feito até hoje foi deliberado. A maioria das coisas que fiz e dos lugares para onde fui foram uma ação intuitiva e quase sempre uma reação. Não tinha desejo de ir para o Brasil, não sabia nada do país. Vi um filme, "Pixote" [de Hector Babenco], e pensei, "Porra! O Brasil parece bacana!". Mas foi só uma forma de escapar de uma situação na qual estava em Londres.

O impacto pessoal de um país nem sempre se traduz na composição. Tendo a sentir que estou envolvido num tipo de experimento imaginário, que é colorido de alguma forma pelos lugares onde vivi, mas esse mundo não precisa desses lugares para existir.

Talvez por causa da perda de seu filho, parece que "Skeleton Tree" é o seu trabalho mais pessoal até hoje. É um Nick Cave, sem personagens, cantando para o ouvinte, conversando e se revelando?
Sim. No passado não escrevia músicas especificamente sobre mim porque sentia que havia algo meio autocongratulatório nesse tipo de composição, de dramatização de sua situação particular. Não sinto mais isso. As coisas mudaram porque a pele acabou de ser arrancada, e não tenho muita escolha sobre o que escrevo.

É um sentimento desconfortável o de não ter mais escolha?
Recebo bem isso porque de certa forma sinto como algo novo. Sinto que existe todo um mundo novo que passei 30 anos evitando. Não estou dizendo que álbuns que fiz antes não eram pessoais. Mas havia uma camada protetora em torno de algumas músicas. Podia estar falando sobre mim mesmo, mas havia algo que me protegia de certa forma.

Nesta turnê, você se apresentará para 20 mil pessoas em Londres. Os ingressos estão esgotados. É raro que um artista consiga atrair muito mais pessoas nesse estágio da carreira. É uma surpresa?
Não. As pessoas adoraram os últimos dois álbuns, e isso é um tipo de confirmação de um experimento que fizemos.

Nós mudamos tudo na nossa música. Finalmente pudemos nos extrair do rock ou das limitações do tipo de rock orientado pela guitarra para algo diferente. Em termos de gênero, não dá para dizer que "Skeleton Tree" é rock. Você pode dizer que "Boatman's Call", apesar de ser um monte de baladas, é um disco de rock.

Mas "Skeleton Tree" é totalmente diferente. É estimulante. É como estar começando de novo com alguma coisa. Se vamos continuar, não tenho ideia, mas sentimos que estamos num lugar com infinitas possibilidades. Acho uma realização incrível fazer 16 álbuns e estar sentado nesse lugar. Ou foi pura sorte, ou algo aconteceu.


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