Uma senhorinha, em suas insônias, tem o pensamento atravessado pelo nome da melhor amiga, morta há muitos anos. Vai então ao Google buscar o nome dela e encontra um link com a indagação: "Quem é Primavera das Neves?".
Começa assim por acaso o novo documentário de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, que leva a pergunta em seu título. Há sete anos, Furtado havia postado a dúvida em seu site, porque achava Primavera das Neves um nome poético. Havia lido-o em duas traduções de Lewis Carrol.
TRADUÇÃO
A senhorinha, Eulalie Ligneul, sabia como ninguém responder à questão: Primavera das Neves foi uma exilada portuguesa que fez carreira como tradutora no Brasil. Embora tenha traduzido cerca de 80 livros de nomes como Vladimir Nabokov, Emily Dickinson e Hans Christian Andersen, entre outros, sua vida permaneceu oculta.
Furtado e Azevedo agora a apresentam: Primavera Ácrata Saiz das Neves era filha de uma sufragista espanhola e um anarquista português.
A família veio para o Brasil fugindo da perseguição política, quando a filha tinha nove anos. Mais tarde, na década de 1950, a tradutora volta para Portugal, casa-se com um capitão anti-salazarista –e precisa exilar-se uma segunda vez no Brasil.
É uma história que comove por ser, ao mesmo tempo, expressão dos horrores e dos encantos do século 20 –com sua massa de mortos, humilhados, excluídos, exilados.
Calcados na energia de sua narrativa, Furtado e Azevedo apresentam uma personagem que expressa duas forças a se afirmar diante da brutalidade: a arte e o acaso, que não obedece a governos e permitiu a essa história sobreviver.
Ironicamente, o "ácrata" no nome da intelectual, criado pelo pai anarquista, quer dizer "sem governo".
Além de Eulalie Ligneul, a trajetória de Primavera é contada pela artista plástica Ana Bella Geiger e por seu ex-marido, o ex-capitão Manuel Pedroso. Seus depoimentos são alternados com a atriz Mariana Lima lendo traduções e poemas da personagem.
A narrativa é conduzida pouco a pouco pela dupla de cineastas, revelando surpresas a cada momento. O depoimento de Ligneul, a quem foram confiados os documentos de Primavera após sua morte, mostra uma personagem preocupada com a perpetuação da memória e em honrar seus mortos.
Primavera é uma personagem que os diretores constroem em pequenos detalhes (ora comoventes, ora engraçados) –mas cuja história também é construída na ausência de informações.
É um aviso ao espectador de que a memória é feita em iguais partes de lembrança e esquecimento.
Assim, as lacunas não podem ser vistas como falhas de documentação ou pesquisa, e sim como um alerta: esquecimento, nesse caso, também diz muito sobre a história que é contada no filme.