Folha de S. Paulo


Análise

Debate sobre Carolina Maria de Jesus beneficia autoras negras

Norberto/Acervo Ultima Hora/Folhapress
A escritora Carolina Maria de Jesus em sua casa - Sao Paulo, 27.05.1952 - Foto: Norberto/Acervo Ultima Hora/Folha Imagem ***FOTO DE USO EXCLUSIVO FOLHAPRESS***
A escritora Carolina Maria de Jesus em sua casa, em São Paulo, em 1952

O hábito de chamar Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo" e outros títulos, de "ex-catadora de lixo" descortina um antigo problema da crítica literária brasileira e da mídia que largamente difundem obras que interessam ou não aos leitores.

Ao que parece, Carolina não poderá jamais ser considerada uma escritora brasileira, como Clarice Lispector ou Lygia Fagundes Telles –também autoras de obras a propósito de seus contextos sociais, culturais e afetivos– porque não cabe nos moldes aristocráticos do que significaria ocupar esse posto dentro da história da literatura brasileira.

Carolina foi uma mulher negra e pobre que produziu material literário à luz de suas vivências nas favelas paulistanas. Passou fome e experimentou o amargo da pobreza em uma época tão próspera para alguns setores e tão miserável para outros.

No último dia 18, intelectuais debateram na Academia Carioca de Letras a respeito da categorização da obra dela.

Parte defendia "Quarto de Despejo" como expressão literária, e não só um diário de bordo da pobreza como vociferado por parte da crítica. A outra, baseada nesse e em outros argumentos, dizia ser impossível lidar com o livro nos termos de legítima produção de literatura na contemporaneidade brasileira, já que "qualquer um poderia escrevê-lo".

Será mesmo verdade? Ou o momento se anuncia como uma chance para revisarmos quais as definições fundamentais usadas pela crítica como ferramentas de discriminação do que vale e do que não vale na estética literária?

Em face do ocorrido, é impossível deixar de levar em consideração o apagamento de outras autoras negras no cenário atual da criação brasileira da prosa e da poesia.

Se para as mulheres brancas a inserção no meio editorial já é difícil, para as mulheres negras o fator racismo é agrava o problema de gênero.

A própria Elisa Lucinda, que defendeu Carolina na instituição, muitas vezes não tem sua produção literária levada em conta quando lembrada como artista brasileira. Assim ocorre com Viviane Mosé, Jarid Arraes, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro e Ryane Leão, entre outras autoras.

Ana Maria Gonçalves, mineira radicada na Bahia, escreveu o romance "Um Defeito de Cor", de quase 950 páginas completamente preenchidas por narrativa ágil, historicizante e metafórica, prefaciado por Millôr Fernandes.

Mas muito pouco conseguimos encontrar a respeito de seu trajeto profissional, político e poético em suplementos literários, internet ou cadernos de cultura.

Em contraponto, há toda uma gama de escritores brasileiros homens (mais brancos do que negros) de gerações antigas ou novas frequentemente lançados aos holofotes virtuais e impressos como promessas na cena da palavra. Por que a disparidade?

Poderíamos explicá-la de outra maneira que não aquela associada à condição política em seus aspectos distintivos (gênero, raça, classe, região) tão destacados hoje como fatores substanciais ao debate da sociedade e da cultura? É uma discussão incômoda e muitas vezes, quando atrelada tão somente ao valor individualizante dos argumentos, pode se tornar vazia.

Afinal, não estamos falando de escritores contra escritoras, mas de uma estrutura histórica e institucional nos territórios da linguagem que inclui uma parcela da sociedade em detrimento da outra.

Entretanto, quando alimentado por parâmetros estéticos, socioeconômicos e históricos, esse debate tende a desdobrar-se em constatações preciosas para a modificação de um quadro geral no qual, infelizmente, mulheres negras ainda ocupam posições mais precarizadas no mercado de trabalho –pois também é trabalho o ofício literário.

PALOMA FRANCA AMORIM é escritora e dramaturga.


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