Folha de S. Paulo


Lei Rouanet banca criação de obras, que já existiam, para mostra em SP

As etiquetas em preto e branco das pinturas e esculturas de nove artistas chamam mais a atenção do que as cores das telas mais vibrantes em exposição agora no Museu de Arte Contemporânea da USP, em São Paulo.

Nelas, está escrito que algumas obras pertencem à coleção do Banco Toyota, grupo financeiro ligado à montadora e patrocinador exclusivo da mostra "Os Desígnios da Arte Contemporânea no Brasil".

Estão na mostra, orçada em R$ 500 mil e paga com recursos captados via Lei Rouanet, nomes como Alan Fontes, Ana Prata, Fernando Lindote, James Kudo, Paulo Almeida, Rodrigo Bivar e Tatiana Blass.

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Entrevista #10', pintura de Tatiana Blass realizada em 2014, e agora exposta em 'Os Desígnios da Arte Contemporânea no Brasil', no MAC-USP, em SP
'Entrevista #10', pintura de Tatiana Blass exposta em 'Os Desígnios da Arte Contemporânea no Brasil'

No projeto autorizado pelo Ministério da Cultura, os produtores da mostra disseram que obras seriam produzidas para a mostra e que o processo de criação delas renderia um livro. Mas cinco artistas ouvidos pela Folha afirmaram que seus trabalhos já existiam.

A proposta previa R$ 20 mil a cada artista–R$ 180 mil no total– pela produção da tela. O valor estava ligado à "cessão de direitos" e "material para a construção da obra".

"Fui convidada a participar da exposição e dei obras que eu já tinha", disse Ana Prata. "Não produzi para a mostra."

Rodrigo Bivar também afirmou que os patrocinadores "não financiaram a produção de nada". "Eles fizeram essa exposição e compraram o trabalho como qualquer um compra um trabalho."

"Todas as obras são anteriores", afirmou Tatiana Blass, outra artista da mostra. "Cada artista deu uma obra para o acervo do banco. Eles escolheram obras que abrangessem todo o meu trabalho."

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"Cataratas", de Alan Fontes, uma das obras em exposição no MAC

CONTRATO

Artistas também disseram à Folha que o contrato firmado entre eles e a proponente da mostra, Cris Corrêa Consultoria em Projetos Culturais, determinava que um trabalho seria doado à "patrocinadora", no caso, o banco Toyota.

Segundo informações do Ministério da Cultura, a empresa bancou R$ 500 mil dos R$ 517 mil orçados por meio do artigo 18 da Lei Rouanet. Ou seja, toda a verba pode ser deduzida do Imposto de Renda.

Sem tradição em projetos de incentivo às artes visuais, a empresa tinha patrocinado –também via a mesma lei de incentivo– outro livro de arte, um volume sobre a vida e obra de José Antônio Marton, projeto no qual investiu cerca de R$ 256 mil há dois anos.

Marton, no caso, é agora o curador da mostra no MAC, onde também está uma peça de sua própria coleção, "Zona Morta", uma instalação da artista Tatiana Blass.

O livro "Facetas - A Arte e o Design na Obra de José Marton" foi editado pela C4, da empresária Cris Corrêa, responsável pelo projeto da exposição "Os Desígnios da Arte Contemporânea no Brasil".

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"Corcovado", de Ana Prata, em exibição na mostra

DESTINO DAS OBRAS

Procurado pela Folha, o banco Toyota afirmou em nota que não tem coleção de obras de arte e que "não celebrou nenhum contrato com os artistas participantes".

Já a produtora Cris Corrêa diz que "o detentor [dessas obras] passou a ser o proponente, nesse caso a editora [dela]" e que "o destino das obras após o término do projeto não está especificado no projeto". "A editora tem a intenção de fazer uma doação."

Ainda segundo ela, as etiquetas da exposição que atribuem a posse das obras ao banco Toyota são "errôneas".

De acordo com especialistas ouvidos pela Folha, sob condição de anonimato, há indícios de que a verba pública destinada à realização de uma exposição num museu público foi usada para a construção de um acervo privado.

Eles dizem também que as obras de um projeto incentivado, sem destinação determinada na proposta, devem ser doadas a instituições da área.

Procurado pela reportagem, o curador José Antônio Marton afirmou que artistas participaram de um projeto de residência e que acompanhou a elaboração de cada trabalho.

"Se não fizeram, não levaram a sério o trabalho." Cinco deles, contudo, negam terem sido pagos nesse modelo.

Marton disse não ver conflito de interesses em expor num museu público uma obra de sua coleção particular –obras tendem a valorizar com a inclusão em mostras institucionais como a do MAC. "Não tenho interesse nenhum em me beneficiar disso."

O presidente do MAC, Carlos Roberto Ferreira Brandão, afirmou não saber detalhes do financiamento da mostra.


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