Folha de S. Paulo


Filme refaz trajetória do ator Antonio Pitanga, nome central do cinema novo

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Pitanga como Firmino em 'Barravento', de Glauber Rocha
Pitanga como Firmino em 'Barravento', de Glauber Rocha

Antonio Pitanga conta que nunca temeu "botar a mão na maçaneta". "Na minha época, os negros tinham medo de abrir algumas portas. Eu não. O não nunca foi meu, o não é de quem diz", afirma o ator baiano de 77 anos.

O primeiro sim veio de Trigueirinho Neto, que escalou o então desconhecido Antonio Sampaio como o personagem Pitanga, um dos malandros do filme "Bahia de Todos os Santos" (1960).

O nome do personagem grudou, virou sobrenome artístico e título do documentário que estreia nesta quinta (6) e repassa a carreira, os relacionamentos e a luta de Pitanga contra o racismo.

"Eu vinha na contramão, filho de uma neta de escravos, num Brasil racista e que não reconhecia o artista. O cinema foi meu passaporte", diz, agitando os braços no lobby de um hotel em São Paulo, com o chapéu branco enterrado na cabeça e a roupa toda preta.

De Glauber Rocha, que o teve em seu primeiro e em seu último longa, veio o convite para fazer Firmino, que se insurge contra a religiosidade de uma comunidade de pescadores baianos em "Barravento" (1962). Adepto do candomblé, o ator bateu à porta da mãe de santo Menininha do Gantois.

"Eu ia ter que chutar trabalho de santo no filme. Ela ficou me olhando e disse: 'meu filho, você não é artista? Vai lá e atue, pronto'", conta.

Pitanga é cheio de histórias. Na entrevista, de uma hora e dez minutos, contou sobre almoços na casa de Glauber, namoro com Maria Bethânia ainda adolescente ("que eu respeitava e tinha medo de invadir") e conversas com Chico Buarque. Só não achava que esses casos renderiam um filme.

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Pitanga com Zé Celso (à esq.) no documentário
Pitanga com Zé Celso (à esq.) no documentário

"Mas o Beto [Brant, diretor] é fogo. Ele se aliou à Camila [Pitanga, filha e também diretora] porque essa era a única maneira de fazer eu dizer sim."

Também ajudou saber que não seria um documentário tradicional. A estrutura é ancorada em caminhadas que Pitanga faz pelas ruas de Salvador -pela escadaria da igreja de "O Pagador de Promessas", pelas barracas de "A Grande Feira"- e em conversas espontâneas que trava com amigos, colegas e ex-namoradas.

Passam Caetano Veloso, Zezé Motta, Cacá Diegues, Paulinho da Viola, Othon Bastos, Ruth de Souza... "Caixão não tem gaveta. O que é que a gente guarda da vida? Os amigos, ué", diz Pitanga.

Quando o papo resvala na arte, fica a constatação de que o ator foi peça central na construção da brasilidade, principal preocupação entre os diretores do cinema novo. "Ele bagunça o mundo com sensualidade", define Diegues. "A gente sonhava com um Brasil que não era aquele, da ditadura, e que também não é este", afirma o intérprete baiano.

Quando aparecem as mulheres, é a fama de namorador que se impõe. Atual mulher, a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) descreve o ator se jogando aos seus pés. A atriz Ítala Nandi põe em dúvida: teria Pitanga negado convite de Glauber para filmar "O Dragão da Maldade" (1969) por compromissos com o Teatro Oficina, em São Paulo, ou por ela? Ele ri e não responde.

Com o diretor teatral Zé Celso, Pitanga reflete sobre a libido. "Os jovens de hoje se tornaram seres de plástico, precisam de Viagra, Red Bull, uísque. Não sentem mais o cheiro da fêmea, o cheiro do macho."

Libido à parte, ser símbolo sexual não lhe interessava. "E ser objeto? Eu não", diz à reportagem. "Há duas belezas: a que é a sua e os outros não tomam, que é a do conhecimento; e a dos outros, que é a carne dura, que quando cai trocam por outra."

Da filha, Camila, vem talvez uma das definições mais precisas de Pitanga: "Capoeirista mental". Ele explica o significado: "Dá para vencer na defensiva: não precisa entrar com o golpe, mas com o contragolpe".

E é sobre um contragolpe que ele pretende se debruçar, em sua segunda incursão como diretor. Pitanga quer levar ao cinema a história da Revolta dos Malês, sublevação de escravos muçulmanos que sacudiu a Bahia em 1835. Lázaro Ramos, Taís Araújo, e os filhos, Camila e Rocco Pitanga, devem estar no elenco.


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