Folha de S. Paulo


'O Ruído do Tempo' reconta agruras de músico sob Stálin

Erich Auerbach/Getty Images
compositor Dmitri Chostakóvitch;
Compositor Dmitri Shostakóvitch, é tema do romance 'O Ruído do Tempo'

O RUÍDO DO TEMPO (ótimo)
QUANTO: R$ 29,50 (176 págs.)
AUTOR: Julian Barnes
TRADUÇÃO: Léa Viveiros de Castro
EDITORA: Rocco

Pelo que o mundo já viveu em 2017, "resiliência" deve vir a ser a palavra do ano. Mas não é de agora que a capacidade de "se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças", segundo o dicionário Houaiss, é necessária.

No período do Grande Expurgo stalinista então, que durou de 1934 a 1939, era imprescindível. Em "O Ruído do Tempo", Julian Barnes nos relembra as causas de o compositor Dmitri Shostakovich (1906-1975) ter se tornado um símbolo –bastante à contragosto, diga-se– de resiliência.

A consciência do compositor é invadida por um narrador que aos poucos, à medida que enfileira fragmentos que de início podem afugentar o leitor menos informado sobre a Era Stálin, recompõe êxitos iniciais de uma carreira precoce, estabelecida com o sucesso internacional da Primeira Sinfonia (1926).

Dez anos depois, parado diante do elevador de seu prédio, fumando um cigarro atrás do outro e com a mala pronta na mão à espera de ser enviado para a Sibéria, o músico se perde em recordações enquanto aguarda a chegada da NKVD para prendê-lo.

O sucesso do compositor foi interrompido com a estreia da ópera "Lady Macbeth do Distrito de Mitsensk" –baseada na obra de Nicolai Leskov e tachada pelo "Pravda" de "confusão em vez de música" após Stálin tê-la assistido ao lado de membros do Politburo.

Acusado de produzir música elitista e alheia às necessidades do povo, Shostakovich caiu em desgraça, que logo superou ao fazer o jogo do poder e lustrar algumas botas com a língua, seguindo a lógica resiliente de que "se o Estado fazia concessões, os cidadãos também."

O Ruído Do Tempo
Julian Barnes
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Desde "O Papagaio de Flaubert", o autor britânico Julian Barnes tem criado romances que se apropriam da ideia de que "a história é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação", proferida por Adrian Finn, protagonista de seu brilhante "O Sentido de um Fim".

Com sua versão da vida de Dmitri Shostakovich, aprendemos que a história se repete: primeiro como farsa, depois como tragédia.

Joca Reiners Terron é escritor, autor de "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves" (Companhia das Letras).


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