Folha de S. Paulo


Análise

Noll radicalizou suspensão de marcas temporais e geográficas

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O escritor João Gilberto Noll, morto aos 70 anos
O escritor João Gilberto Noll, morto aos 70 anos

João Gilberto Noll é um dos últimos representantes daquilo que o crítico Alfredo Bosi definiu (num momento anterior ao surgimento do escritor gaúcho) como literatura de "sondagem psicológica" -especialmente Lúcio Cardoso e Clarice Lispector.

Com o primeiro, Noll partilha a temática homoerótica e da inadequação social, o universo sombrio e uma temporalidade estática que resvala nos limites do fantástico. Com a autora de "A Paixão Segundo GH", a crispação interior das personagens, projetada num fluxo de escrita que a todo tempo se interroga.

Mas essas são apenas aproximações que servem para situar Noll na esteira de um processo em que a literatura brasileira ultrapassou temas sociais e identitários (dominantes desde o modernismo até o regionalismo), voltando-se para a experiência do homem lançado na solidão da cidade -com a metrópole, como espaço ficcional, simbolizando também o desenraizamento em relação a laços arcaicos, determinações culturais e históricas.

Nada disso -identidade cultural, vida urbana, história- está ausente da prosa de Noll, mas são temas que surgem num turbilhão perceptivo, fenomenológico, em que suas personagens cancelam a fronteira entre interioridade e exterioridade.

"Sou alguém que se desloca para me manter fixo?", pergunta-se o narrador de "Berkeley em Bellagio" (2002), um escritor que transita entre a universidade norte-americana e a fundação italiana e que só consegue mitigar seu "alheamento convulso" pelo sexo, esses breves momentos epifânicos de preenchimento de uma falta essencial.

O corpo é a pátria dos protagonistas -quase sempre anônimos e quase sempre em fuga, de identidade instável e sexualidade polimorfa- dos romances e contos de Noll. Os acontecimentos históricos aparecem neles como panoramas de devastação, correlato objetivo de uma subjetividade massacrada.

É assim com o campo de refugiados que o protagonista de "Berkeley em Bellagio" reencontra no seu retorno a Porto Alegre, cujo ruinoso subúrbio é percorrido pelo narrador de "O Quieto Animal da Esquina" (1991). Ou, ainda, na guerra em país indefinido que a personagem de "A Céu Aberto" (1996) atravessa para resgatar o irmão.

João Gilberto Noll foi radicalizando essa suspensão de marcas temporais e geográficas, não como negação do concreto, mas como reação insubordinada do ser às apropriações pelo olhar do outro, pelo desejo do outro, pelos cárceres sociais e pelas prescrições da linguagem.

Em "Acenos e Afagos" (2008), plasma sua prosa de andamento torturado, litúrgica, num único parágrafo de 200 páginas, descrevendo a metamorfose de uma personagem que não apenas transita de um corpo masculino para um corpo de mulher, mas que expande sua "epopeia libidinal" para o inanimado e o reino animal.

Sem jamais cair no discurso de gênero panfletário ou militante, Noll fez da homossexualidade o interpretante de um sentimento de exílio, ao qual não falta um senso de humor nervoso, que ele soube levar com delicadeza aos livros para público juvenil que publicou nos últimos anos, como "Sou Eu!", "O Nervo da Noite" e "Anjo das Ondas".


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