Folha de S. Paulo


Escritor João Gilberto Noll morre aos 70 anos em Porto Alegre

Rogerio Cassimiro - 4.jul.2008/Folhapress
O escritor gaúcho, João Gilberto Noll durante palestra na sexta edição da Flip, em Paraty
O escritor gaúcho, João Gilberto Noll durante palestra na sexta edição da Flip, em Paraty

O escritor gaúcho João Gilberto Noll morreu em Porto Alegre aos 70 anos. Cinco vezes vencedor do prêmio Jabuti, Noll é autor de livros como "O Cego e a Dançarina", "A Fúria do Corpo" e "Harmada".

O autor deveria ter dado uma oficina literária que ministraria na capital gaúcha nesta terça (29), mas não apareceu. Preocupados, membros da organização da oficina ligaram para a família. Uma prima do autor foi à sua casa, mas já o encontrou morto e não houve tempo para socorrê-lo. Os médicos chamados pela família atribuíram a morte a uma causa natural —mas não se sabe qual exatamente.

"Era um cara que vivia para a literatura. Eu tinha acabado de receber um pedido de uma editora da França para publicá-lo, seria a primeira vez que um livro dele sairia no país, mas não tive tempo de avisá-lo. Não precisava me esforçar muito para divulgar a obra dele, porque editoras do mundo todo me procuravam", conta Valéria Martins, agente literária de Noll..

O enterro do escritor, um dos principais prosadores contemporâneos do Brasil, está previsto para as 18h desta quarta-feira (29), no Cemitério João 23, na capital gaúcha.

Formado em letras e dono de um estilo provocante e inovador, seu primeiro conto foi publicado por Carlos Jorge Appel na antologia "Roda de Fogo" (1970).

Seu primeiro livro, "O Cego e a Dançarina" (1980), lhe rendeu o Jabuti de autor revelação. Noll era dono de uma escrita marcada pelo existencialismo e pela psicanálise. Seus livros, dizia, eram uma exploração do inconsciente. A análise, também contava, foi importante para que ele se libertasse da repressão gerada por uma educação religiosa.

Em 1996, em entrevista à Folha, Noll disse que não costumava traçar "planos de voo" antes de escrever.

"[O livro] sai de um modo litúrgico, procuro abraçar certos momentos de palpitação. Não interessa muito o fluxo insensato de um dia após o outro. Me interessa o momento coagulado. O romance também se esvai, é claro, a duração do tempo também exaure, daí talvez o final do livro, meio enigmático para mim mesmo. Mas, também não procuro decifrar tudo o que escrevo, não. Preciso de uma certa escuridão", disse.

Noll é visto como um dos renovadores da prosa brasileira nos anos 1980, por conta de seu intenso trabalho com a linguagem literária em vez de ser um escritor voltado ao enredo. Tanto que uma das leituras mais importantes de sua vida era o poema "A Terra Desolada", de T. S. Eliot, na famosa tradução de Ivan Junqueira.

Também apontava "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector, como uma grande influência. "Esse livro foi definitivo e definidor para mim. Então pensei: se ela fez isso, por que eu não posso tentar fazer também um romance abstrato?", disse em uma entrevista.

Nascido em Porto Alegre, ele viveu no Rio de Janeiro por 22 anos. Em 1975, começou a lecionar no curso de comunicação da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), época em que já escrevia para a "Folha da Manhã" e para o "Última Hora". Entre 1998 e 2001, publicou uma coluna na Folha intitulada Relâmpago, em que publicava pequenas narrativas curtas.

O escritor não vinha de uma família de leitores. Chegou, na infância, a se preparar para ser cantor lírico e a ganhar alguns trocados cantando em festas e casamentos. Foi com a música, dizia, que sentiu pela primeira vez que o "veneno artístico" corria em suas veias.

A literatura surgiu em uma crise na adolescência, quando Noll chegou a abandonar a escola por mais de um ano, para preocupação da família.

"A escrita era um tipo de expressão que não precisava de uma equipe, de um público diretamente. É, realmente, a arte solitária por excelência", disse certa vez em uma entrevista.

Além de "O Cego e a Dançarina", coletânea de 24 contos, recebeu ainda o Jabuti por "Harmada" (Francis, 2003) e "A Céu Aberto" (Record, 2008), "Mínimos Múltiplos Comuns" (Francis, 2003), que reúne contos sobre a criação do universo.

Ele também recebeu o prêmio da Fundação Guggenheim, em 2002, e da Academia Brasileira de Letras, em 2004. Nos anos 1990, chegou a lecionar literatura brasileira na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos.

Sua obra também foi celebrada no cinema. Em 1984, o cineasta Murilo Salles dirigiu "Nunca Fomos Tão Felizes", inspirado no conto "Alguma Coisa Urgentemente". Em 2003, foi a vez de "Harmada" ser levado à telona, por Maurice Capovilla. Em seguida, em 2009, Suzana Amaral adaptou "Hotel Atlântico".

REPERCUSSÃO

No meio literário, o tom é de lamento com a notícia.

A poeta mineira Ana Martins Marques, que escreveu uma dissertação de mestrado sobre Noll, lembrou o impacto que os livros dele lhe causaram. "Acho que foi um privilégio ter passado algum tempo no embate com um texto tão singular, ter feito esse percurso de formação passando por um texto que justamente parece dinamitar toda ideia de formação, texto-aventura, que segue uma trilha tão inusitada na ficção brasileira, trilha cheia de interseções com a poesia."

À Folha, o romancista Carlos Henrique Schroeder disse que a notícia deixou todos surpresos. "Tivemos um momento em novembro do ano passado em que ele foi homenageado no Festival do Conto e ele estava super bem. Me disse que estava escrevendo e produzindo. É uma perda irreparável de um grande escritor brasileiro vivo, que tem obras por décadas."

Em relação as obras do escritor, Schroeder as define como "livros que sempre te tiram da zona de conforto. Ler os livros do Noll é ler o mesmo livro, mas sempre uma aventura diferente."

No Twitter, o escritor Daniel Galera escreveu que está com o "coração apertado com o falecimento do João Gilberto Noll. A inspiração, a amizade e o assombro ficarão pra sempre."

De acordo com o escritor Luís Augusto Fischer, "ele [João Gilberto Noll] queria que tudo confluísse, sem vacilações ou concessões, num objeto estético íntegro, que passava sempre pelo corpo, o que é raro especialmente na literatura feita por homens, creio. Para isso ele foi capaz de desprezar possibilidades de livros mais amenos, mais palatáveis ao gosto médio e bem comportado, ao preço de viver isolado."

Já a autora e crítica literária Laura Erber disse que os poetas que desejavam produzir prosa encontrava na obra do autor motivação para tal. A gente encontrava motivação e possibilidade de pensar a prosa num contexto inventivo mais amplo, mais ambíguo e desafiador", disse.


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